POLÍCIA
Na semana do trabalhador, Delegado fala sobre abusos de patrão com empregado no Acre e revela: entre 1995 e 2022 mais de 260 ‘escravos’ foram resgatados
Jorge Natal, especial para o Acrenews
A Constituição Brasileira garante a liberdade de trabalho. Todo cidadão é livre para escolher o seu ofício ou a sua profissão. Ele pode trabalhar de forma autônoma ou subordinada, que é com carteira de trabalho assinada. Mas ele tem que cumprir determinadas normas. Isso chamamos de subordinação, a qual dá alguns poderes para o empregador em relação ao empregado. Só que esses poderes têm limites e estão expressos na própria Carta Maior e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) foi criado para mediar a relação capital x trabalho, pois essa correlação de forças, pela sua própria natureza, é desigual e a balança se inclinaria sempre para o lado mais forte. Por causa disso, foi necessário impor uma série de limites ao empregador. Uma pessoa, quando trabalha para uma empresa, não deixa de ser cidadão e tem direitos. O ordenamento legal garante essa relação livre de trabalho. O empregador tem uma série de obrigações como, por exemplo, fazer o registro, pagar as férias, o décimo terceiro, o repouso semanal, dentre outros.
Isso tudo é violado quando o trabalho análogo à condição de escravidão, que nos remete ao século XVIII, dos navios negreiros e dos castigos físicos, entra em cena. Mas por que se diz que é análogo? Porque algumas daquelas características aparecem. De acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, essa condição é caracterizada “pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Natural de Campo Grande (MS) e radicado no Acre há quatorze anos, o Auditor Fiscal do Trabalho (AFT), Leonardo Lani de Abreu, de 47 anos, tomou posse na passada como superintendente regional do órgão. Ele já chefiou o projeto de fiscalização da Construção Civil, a seção de Multas e Recursos e integrou o Grupo Nacional de Combate à Discriminação no Trabalho. Também é professor adjunto no curso de Direito da Universidade Federal do Acre (Ufac).
Abreu se comprometeu com a fiscalização para garantir a segurança e a dignidade dos trabalhadores: “Devemos potencializar nossas atividades de orientação, apostando na educação como meio para mudança de mentalidades e comportamentos. Ainda para o primeiro semestre deste ano, daremos início às ações fiscais de erradicação do trabalho infantil e promoção da segurança do trabalho, que serão precedidas de ampla orientação aos empregadores”, destacou.
Vejam alguns trechos da entrevista:
Acre News – Fale um pouco sobre o trabalho de um Auditor Fiscal do Trabalho.
Leonardo Abreu – O auditor fiscal do trabalho tem a função de garantir o cumprimento da legislação trabalhista, em muitas áreas. Cabe ao profissional, por exemplo, verificar se as empresas concedem férias, recolhem FGTS, incluem pessoas com deficiência e aprendizes. Também são eles que fiscalizam o trabalho infantil e escravo. E ainda fiscalizam a Saúde e Segurança no Trabalho (SST). Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) elevou a SST ao status de direito fundamental, algo inédito no nosso ordenamento jurídico. É um trabalho gratificante pelo diálogo e contribuição com a justiça social.
Acre News – O senhor vai dar continuidade às fiscalizações de trabalhos análogos à escravidão?
Leonardo Abreu – No período de 1995 a 2022, no Acre, as nossas ações fiscais já resgataram duzentos e sessenta e três trabalhadores em condições análogas à escravidão. Onde tem crime ambiental, tem infração trabalhista, pois uma acompanha a outra. São trabalhadores contratados por um capataz (gato), que as submetem a dormirem em barracos de lona, sem água potável, sem fornecimento de EPI (Equipamento de Proteção Individual), alimentação precária, dentre outros absurdos. As consequências para os infratores são imensas, inclusive podendo haver a perda da propriedade. O Ministério Público do Trabalho (MPT) é o órgão responsável por apresentar as denúncias junto à Justiça do Trabalho.
Acre News – Também é comum em nossa região, principalmente por uma questão cultural, o trabalho infantil. Comente sobre isso.
Leonardo Abreu – Existe o comércio de doces e objetos, principalmente nas ruas. O trabalho ambulante expõe crianças à violência e ao assédio sexual, dentre outros riscos. No interior, trabalham como operadores de máquina para elaborar alimentos, sendo a maioria na fabricação de mandioca em casas de farinha. Além do esforço físico, os jovens ficam expostos a acidentes com instrumentos cortantes e a altas temperaturas. Ainda neste semestre, iremos desencadear fiscalizações e ações educativas. Está no imaginário que o trabalho é uma virtude, que é importante a criança trabalhar para formar bons princípios e por aí vai. É aquela história de que é melhor trabalhar do que fazer coisas erradas, como se a criança não tivesse alternativas. A criança precisa estudar e participar de atividades recreativas, lúdicas e culturais, mesmo porque o trabalho precoce compromete toda a sua formação.
Acre News – Quantos servidores existem para fiscalizar todo o estado?
Leonardo Abreu – Para o trabalho de campo, temos seis. Não é a quantidade ideal, uma vez que a OIT recomenda, para cada dez mil trabalhadores, um AFT. Em outras palavras, temos um défice de 60% no nosso quadro de fiscalização. Vamos estreitar parcerias com sindicatos, uma vez que as ações administrativas e judiciais deles colaboram com o nosso trabalho. E também estamos na iminência de realizar um concurso público.
Acre News – O Acre é subdesenvolvido e amarga o segundo pior PIB do Brasil. Temos mais gente com auxílios do que com carteiras assinadas. Comente sobre isso.
Leonardo Abreu – O MTE também tem como atribuição o fomento ao trabalho e à renda. Passamos por um momento muito difícil, inclusive fomos extintos durante dois anos e meio. Naquele período, vincularam a fiscalização do trabalho ao Ministério da Economia. Esperamos que essa nova gestão retome o crescimento econômico e, dessa forma, possamos ter mais empregos e renda. Numa economia próspera, pode existir uma melhor relação entre o capital e o trabalho.
Acre News – Encontrar trabalhador sem carteira assinada ainda é uma realidade?
Leonardo Abreu – Já avançamos muito no aspecto de formalização de vínculos. Isso é inegociável, não dá para contemporizar. A gente faz um auto de infração, que leva a lavratura de outros autos, ou seja, as inflações vêm em cascata. Hoje existe um grande índice de informalidade, principalmente no trabalho doméstico. Mas a função precípua do MTE é a orientação ao cidadão e promoção do diálogo social. O nosso trabalho é preventivo e educativo para uma mudança de hábitos.