RAIMUNDO FERREIRA
Coluna do professor e arquivista Raimundo Ferreira de Souza deste sábado, 27: Democracia na teoria

DEMOCRACIA NA TEORIA
Raimundo Ferreira
Sem dúvida, a representação mais legítima para governar os destinos de um povo seria aquela formada pela maioria de seus membros, com ideais alinhados aos interesses coletivos — uma fórmula que, se existisse na prática como se imagina na teoria, poderia ser perfeita e duradoura, talvez até infalível em seus resultados. No entanto, esse arranjo ideal permanece restrito ao campo das ideias, pois jamais se concretiza plenamente na realidade.
A defesa de interesses de grupos é hoje um discurso onipresente, e todos, invariavelmente, convocam a sociedade a se unir em torno de suas propostas sob a mesma palavra-chave: democracia — termo que, na retórica, tornou-se sinônimo de consenso e legitimidade universal. Todavia, na prática, campanhas são promovidas, acordos são articulados, alianças são estrategicamente construídas e representantes são eleitos. Uma vez no poder, muitos governantes passam a tratar o sistema político como um mecanismo de manutenção: um dos melhores empregos públicos, cuja estabilidade exige, quase sempre, concessões, facilidades e o cultivo permanente de simpatizantes que, mais do que apoiadores, convertem-se em verdadeiros clientes políticos.
Assim, sob o verniz democrático, tenta-se consolidar a narrativa de que se governa em nome do povo, ainda que, frequentemente, a prioridade real seja a preservação de bases eleitorais e interesses específicos. Longe de aderirmos a afirmações radicais ou a visões sectárias, reconhecemos, contudo, a escassez de exemplos históricos em que a democracia tenha operado de forma genuinamente participativa, livre de manipulações estruturais ou de distorções inerentes às próprias regras do jogo — como proporcionalidade partidária, legendas, coligações e outros subterfúgios legais que, embora legítimos, afastam o processo do ideal de representatividade plena.
Diante desse cenário, recordamos a célebre provocação de Jorge Luis Borges, muitas vezes citada:
“A democracia é um erro estatístico, porque na democracia decide a maioria, e a maioria é formada de imbecis.”
É evidente que não concordamos com a ideia de que cidadãos que escolhem seus representantes por meio do voto sejam, em sua totalidade, “imbecis”. Ainda assim, é possível que Borges, como observador agudo das contradições humanas, estivesse se referindo não às pessoas em si, mas às variáveis do processo: manipulações, incentivos, arranjos e condicionantes que moldam escolhas e resultados. Talvez tenha considerado o contexto, não o indivíduo.
Por fim, sem absolutizar sua afirmação, permanecemos a meditar sobre o incômodo que ela provoca — não pela conclusão, mas pela pergunta que nos força a encarar: até que ponto o sistema representa o povo, e até que ponto o povo é levado a representar o sistema?










