CULTURA & ENTRETENIMENTO
Escritora e editora: “Vivi na rua dos 5 aos 11 anos e biblioteca me salvou”
Por Uol
“Minha mãe morreu quando meu irmão nasceu, eu tinha dois anos e meio, logo ele foi entregue a adoção. Em seguida, meu pai trouxe a amante dele para nossa casa. Nunca sofri violência dele, ele bebia muito, era negligente e ausente, já ela se prostituía em casa e era violenta. Um dia, ela jogou uma frigideira quente em mim, e eu fugi de casa aos cinco anos, andando pela Vila Maria, em São Paulo. Quando eles estavam sóbrios, tentavam me resgatar, eu voltava para casa, eles bebiam de novo, tudo se repetia, e eu voltava para a rua; levou uns anos essas idas e vindas, até que eu não voltei mais, e eles também não foram mais me buscar. Me acostumei com a rua.
Até descobrir a biblioteca, dormia nas calçadas ali da região, no início as pessoas achavam que eu estava na casa do meu pai, pedia pão nas padarias ou roubava para matar a fome. Aos sete anos, eu era uma menina que chamava atenção e me vestia como um menino para evitar o assédio. A biblioteca pública era perto de casa, eu entrava e saía, brincava, me escorregava nas escadas, entrava nas salas de leitura e ficava quieta, lia; aprendi a ler com o meu pai, depois na pré-escola (antes de fugir) e avancei na biblioteca. Isso fez muita diferença na minha vida, as funcionárias me ajudavam, às vezes me escondia, e iam embora e não percebiam, às vezes percebiam e me deixavam lá para eu não ficar na rua.
A paixão pela literatura veio pela biblioteca, com os livros, a leitura e as ‘conversas com os autores e personagens’ como costumo dizer, ali eu aprendi a escrever. Entre idas e vindas, vivi na rua dos cinco aos 11 anos, até que duas tias souberam da situação e me convenceram a deixar a rua. Fui para a casa delas e tive um novo olhar para a vida e um novo espaço de convivência.
Meu irmão nasceu, minha mãe faleceu, ele foi adotado e fomos separados. Eu fui reencontrá-lo quando me casei, aos poucos fomos nos reaproximando. Eu já o reencontrei fisicamente, mas ainda o estou reencontrando dentro de mim. Ele leu o livro que escrevi, ali respondi muitas dúvidas dele sobre o nosso pai, sobre minha vida na rua. Consegui me abrir mais com ele e, hoje, sou a irmã dele, aquela que dá conselhos e ouve seus segredos. Às vezes ele me liga em um dia que estou triste, mas digo que estou bem; ele deve me achar uma fortaleza. Há 19 anos, eu e meu marido montamos uma gráfica em Guarulhos (SP), um lugar que nós montamos com a nossa veia empreendedora, isso contribuiu muito para eu ser hoje uma editora. Atualmente, faço faculdade de letras — antes, cursei sete semestres de direito e um dia pretendo terminar o curso.
Meu pai e minha madrasta já morreram, nunca precisei perdoar meu pai, pois nunca tive raiva dele, e ela já a perdoei há bastante tempo.
Eu compreendi com o tempo e com os livros, que a violência é um ciclo, quando alguém sofre muita violência, ela repassa adiante, isso me ajudou a perdoá-la.
Sou casada há 21 anos, tenho uma filha de 23 — ela foi adotada quando tinha dois anos pelos pais do meu marido logo após casarmos e passamos a criá-la também, ela é a minha grande alegria. No ano passado, lancei meu primeiro livro, “Colo Invisível”, uma mistura de ficção com autobiografia, porque muitas das memórias não são exatas. Pretendo publicá-lo no exterior.
Hoje, sou coordenadora editorial da minha gráfica/editora e empresária e estou em um momento de expansão, crescimento e compreendi com o tempo e com os livros, que a violência é um ciclo, quando alguém sofre muita violência, ela repassa adiante, isso me ajudou a perdoar e ter reconhecimento desse processo. Acredito que as pessoas em situação de rua não percebem que podem sair dela. Antes, meu sonho era ter uma casa, tomar um banho quente e comer, isso eu já realizei há tempos. Desejo crescer bastante na defesa de outras crianças para que elas não sofram e para que mulheres não sofram, não tenho sonhos absurdos, já me considero uma pessoa feliz.
A minha história me ensinou que ninguém deve ser julgado, que cada problema é único, que as pessoas não sabem as dores para poder apontar o dedo ao outro, que ninguém sabe os motivos que levam uma pessoa a abandonar alguém ou a se abandonar. A minha história mostra que as famílias precisam de ajuda, que as crianças precisam ter voz e não achar que o adulto é sempre o dono da razão.
A minha história mostra que é possível mudar, que a gente pode acreditar e correr atrás e estudar sempre, porque a educação transforma, sem ela ninguém vai para a frente, nenhum país vai para frente, que os professores são importantes, assim como os autores e os livros também são.”
Luciene Müller, 42, é escritora e empresária e vive em Igaratá (SP).
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