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Facção: na guerra contra o crime organizado no Acre, agentes do MPAC unem forças com as polícias em ambiente hostil de florestas, drogas e mortes
Por Resley Saab, especial para o AcreNews
O sol mal tinha raiado na manhã de um dia de novembro de 2022, quando tropas de elite anunciaram uma revista no Instituto Penal de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul (MS). Foi do IPCG, a 2.833 quilômetros de distância de Epitaciolândia, no Acre, que um detento – de nome não revelado –, deu ordem para que se iniciasse um massacre a membros da organização criminosa Comando Vermelho, o CV, na cidade, localizada a 230 quilômetros da capital Rio Branco, na fronteira com a cidade boliviana de Cobija, capital do departamento do Pando.
Na cela do indivíduo, quatro celulares constituíam o elo de ligação com o mundo e seus sectários do Primeiro Comando da Capital, o PCC, país afora, incluindo o Acre. Em guerra com o CV pelas rotas de tráfico internacionais, o PCC tenta estabelecer sua hegemonia na região, inclusive rompendo com antigos aliados, como a facção acreana Bonde dos 13, hoje também em conflito direto com o Primeiro Comando da Capital.
Esta reportagem é resultado de dois meses de pesquisa e análise de dados em segurança pública. De relatórios de entidades governamentais a entrevistas com especialistas no tema, de depoimentos de procuradores e promotores do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) a pessoas que largaram facções criminosas após longo período no cárcere, eis um diagnóstico do tráfico para além das trincheiras da repressão, num ambiente cooperado pela selva amazônica e suas características de floresta porosa, perfeita para as organizações criminosas – brasileiras e internacionais –, cruzarem ramais, igarapés, rios e trilhas com um volume altíssimo de cocaína e skunk, a partir do maior produtor do planeta, o vizinho Peru, e da Bolívia.
De granada a metralhadoras enterradas no quintal, as faces do terror
Dias antes de a Inteligência da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança do Acre (Sejusp) descobrir quem era o homem preso no Mato Grosso do Sul – e mandante das execuções na região da fronteira no Acre –, uma chacina em Epitaciolândia contra indivíduos supostamente membros do Comando Vermelho desencadearia uma sucessão de eventos que permitiram à polícia entender que o jogo contra os criminosos seria cada vez mais pesado. Nos dias que se sucederam ao crime, policiais do Grupo Especial de Operações em Fronteira, o Gefron, e do 5º Batalhão da Polícia Militar do município de Brasileia (cidade coirmã de Epitaciolândia), foram recebidos a bala por dois indivíduos.
Um dos acusados, identificado como Ruan Lucas Martins de Oliveira, de 20 anos, foi morto pela polícia após lançar uma granada contra os agentes, que só não foi detonada porque o pino não foi puxado pelo agressor. Ruan Oliveira tinha ao menos 15 anotações na Justiça por vários crimes e era apontado como principal suspeito de envolvimento em assaltos e homicídios na fronteira. O comparsa, baleado e levado ao hospital, foi liberado em audiência de custódia.
O banho de sangue na região, que ganhou proporções cada vez maiores em outubro e se estendeu a dezembro de 2022, passou a ser investigado à exaustão pela Inteligência da Sejusp e pelo Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado, o Gaeco, a equipe de elite do MPAC.
O trabalho continua, já que a guerra entre essas organizações não acaba. Um desses revezes aos criminosos foi a apreensão de armas de alto poder letal no dia 7 de dezembro, pelas forças de segurança do estado que compõem a Operação Hórus. Duas metralhadoras, um fuzil, um revólver, quatro carregadores de metralhadora, um carregador para pistola e dois carregadores para fuzil estavam enterrados no quintal de uma casa de Epitaciolândia. Seis pessoas foram presas.
PCC contra CV, o jogo mortal pelo controle das rotas do Acre
Vários fatores motivaram o rompimento da paz entre as duas maiores facções do país. Um deles, no entanto, envolve diretamente o Acre e a sua posição geográfica privilegiada para o narcotráfico e o controle das rotas internacionais.
Com a morte do traficante Jorge Rafaat Toumani, riscado do mapa do crime numa operação com mais de 100 homens armados, o PCC começou a controlar a distribuição das drogas a partir do Paraguai. Já o CV tinha o monopólio das cargas que deixam o Peru pelos estados da região Norte, inserindo-se aí o Acre.
Por isso, a onda de crimes no estado, que havia começado em março e cessada no intervalo dos meses subsequentes, voltou com força total em outubro, com a morte de Junior dos Santos Silva, o ‘Rato’, executado na saída de um bar, numa das ruas do bairro Aeroporto, em Epitaciolândia, por dois indivíduos armados de pistolas 9 milímetros, no dia 26.
Um mês depois, em 26 de novembro, Rio Branco registraria mais execuções, tentativas de homicídio e um carro incendiado na Baixada da Sobral. O levante do mal entre as duas organizações obrigou a Sejusp a instalar um gabinete de crise para monitorar e combater de forma eficiente essas disputas, sempre com o auxílio do Gaeco do MPAC e da Inteligência da própria Sejusp.
Agora, com o monopólio do PCC sobre o entorpecente que entra no país pelo Paraguai, segundo as autoridades do Ministério Público que lidam diretamente com as investigações, a facção paulista tenta abocanhar outros filões do mercado de entorpecentes antes controlados pelo CV, e alguns até em conjunto com a organização criminosa Família do Norte, a FDN, surgida nos presídios amazonenses.
A diferença aqui é que a FDN assenta seus crimes na região do “Trapézio Amazônico”, como é conhecida desde os anos 1980 a região da tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru.
Operação ‘Fim da Linha’, a prova de fogo para o MPAC contra as hordas do mal
Para entender melhor a expansão do crime organizado no Acre, é preciso primeiro eliminar a sensação de que existe um fosso investigativo separando o Ministério Público, e as polícias, das organizações criminosas. Entre o final da década de 1990 e início dos anos 2000, essas instituições já haviam se aperfeiçoado, fazendo de suas experiências do passado uma arma poderosa para os dias atuais. Um desses momentos foi protagonizado na manhã do dia 8 de outubro de 2015, uma quinta-feira, quando 15 detentos do presídio Antônio Amaro Alves foram transferidos para as unidades prisionais federais de Mossoró (RN) e Campo Grande (MS).
Embarcados por homens da Força Nacional em um avião C-130 Hércules da Força Aérea Brasileira, eles foram acusados de ordenar, nos dois dias anteriores, ataques em série a prédios, escolas e coletivos do transporte público, em um cenário nunca visto antes no Acre.
Os atos de terrorismo tinham sido uma retaliação de membros da facção Bonde dos 13 em razão da morte de dois integrantes quando fizeram um roubo a mão armada em Rio Branco. Na ocasião, os procuradores, promotores e técnicos do MPAC fizeram a diferença ao identificar e denunciar os cabeças, e municiando as polícias com as informações necessárias para atuarem com precisão.
A promotora de Justiça Marcela Cristina Ozório, à época promotora-chefe do Gaeco, lembra que o MP e seus promotores trabalharam à exaustão no que seria a primeira grande operação do Gaeco.
“Passamos o fim de semana trabalhando e, ao final, tínhamos os pilares da nossa matriz de conhecimentos, para agir naquele tipo de cenário”, explica Ozório, que hoje é coordenadora-geral do NAT.
As cenas de ônibus incendiados, de polícias nas ruas, do Terminal Urbano de Rio Branco completamente vazio em pleno horário de pico: o das 19 horas. Rumores dos mais diversos circulando nas redes sociais sobre ameaças – como por exemplo, a de fogo na escola Carlos Casavecchia, no bairro Wanderley Dantas. Relatos como o do motorista do ônibus 7960, da linha do conjunto Mocinha Magalhães, que disse ter conseguido fugir de um grupo de arruaceiros com corotes de gasolina nas mãos, foram a prova de fogo que faltava no currículo dos homens do Gaeco e da Delegacia de Combate ao Crime Organizado, num jogo de caça aos ratos que começou nos Setores de Operação e de Inteligência do Ministério Público do Estado do Acre.
A ideia era agregar todo o tipo de informação para, com a Sejusp – esta última instituição considerada a coluna cervical das polícias –, estancar novos ataques. Começava uma corrida em busca de dados, análises de denúncias anônimas, confrontos de depoimentos e escutas telefônicas autorizadas pela Justiça.
O NAT é uma orquestra sinfônica afinada com todos os demais órgãos do MP acreano, que teve como primeiro coordenador, o então promotor Danilo Lovisaro do Nascimento, em 2012. A larga experiência no combate ao crime organizado nas décadas anteriores credenciou o atual procurador-geral do MPAC para o cargo. Dito isso, as operações conjuntas do órgão ministerial seguem a um padrão com estudos prévios às atividades que serão desencadeadas em campo. É nesta etapa que são verificadas as informações em bancos de dados, que podem ser sigilosos ou de acesso restrito.
“A natureza da investigação desse nível é muito delicada. E embora cada etapa de uma operação seja realizada por profissionais em instantes distintos, há uma lógica própria na configuração da reunião das partes, até ser deflagrada a ação da polícia, com a intervenção do Ministério Público”, explica Lovisaro do Nascimento, hoje procurador-geral do MPAC, em um trecho da publicação Janela de Conhecimento, editada pelo próprio Parquet acreano.
Em 2020, foram atendidas 338 solicitações de verificação e análises pelo NAT. Desse total, 44,4% eram relacionadas à identificação de vítimas e testemunhas, e 28,4% voltadas à pesquisa e levantamento de informações em bancos de dados. Já em 2021, a quantidade de solicitações foi inferior em 16,6% em relação ao ano anterior. No entanto, o percentual de localização de pessoas, vítimas e/ou testemunhas cresceu para 58,5%. E os levantamentos de informações em bancos de dados chegaram a representar 21,3%.
As promotorias de Justiça são as maiores demandantes do setor: em 2020, das 338 demandas, 303 (89,6%) forma de promotores de Justiça, das mais diversas áreas. Já em 2021, das 282 demandas, 238 (84,4%) foram dos membros do MP acreano.
A missão das polícias: dificultar o terreno aos operadores de cartéis numa luta sem fim
Antropólogos, sociólogos e toxicologistas do mundo inteiro são unânimes em afirmar que erradicar o comércio de entorpecentes no mundo já é praticamente impossível. E o Acre, por sua localização geográfica, bem próximo da origem de todo esse problema, se vê no meio de uma missão em que precisa impedir ao máximo possível as ações do crime organizado.
Com a pressão americana e suas agências antidrogas sobre a Colômbia, o Peru tornou-se novamente líder na produção mundial de cocaína no planeta. E agora já distribui mais um produto em larga escala, o skunk, ou a supermaconha.
Locais como a região do ‘Vraem’ – sigla para Vales dos rios Apurimac, Ene e Mantaro –, nas partes mais altas da floresta amazônica peruana, concentram mais da metade da produção de cocaína do Peru. E o último exemplo de que a maconha turbinada vem junto à cocaína se deu no último dia 8 deste mês de janeiro, um domingo, quando uma barreira das polícias Civil, Federal e do Gefron apreenderam 61,8 quilos de cocaína e de skunk prensados, no km 16 da BR-317, entre os municípios de Epitaciolândia e Xapuri. Um homem de 34 anos foi preso.
A droga entra pela cidade de Assis Brasil (a 310 quilômetros de Rio Branco pela BR-317, na divisa com a cidade peruana de Iñapary) e segue Brasil a dentro. Outra rota utiliza o rio Purus desde a cidade de Puerto Esperanza, em solo peruano, a um dia de barco desde o município de Santa Rosa do Purus (distante 400 quilômetros de Rio Branco em linha reta). Santa Rosa não tem ligação terrestre com a capital acreana, mas quatro dias descendo pelo Purus, os traficantes alcançam a ponte na BR-364, no município de Manuel Urbano. Ali, entregam a carga, que prossegue nas mãos de outros indivíduos via estrada até a capital acreana.
A terceira trilha mais conhecida é a da Ponta do Abunã, nos municípios de Plácido de Castro e Acrelândia. Na região, desde o dia 19 de dezembro, 56 homens da Força Nacional auxiliam as forças de segurança do Acre no combate ao narcotráfico e ao roubo de veículos para serem trocados por drogas na outra margem do rio Abunã, na vila boliviana de Montevidéu.
Foi na região que às 6h30 do dia 24 de dezembro, véspera de Natal, o Gefron desmantelou uma rota do tráfico de drogas que utilizava o rio Abunã transportando maconha da Bolívia, em duas embarcações. Pelo menos 25 barras da droga prensada, pesando 25,1 quilos, foram interceptadas pelo grupo de elite da Sejusp. Um indivíduo de 29 anos foi preso e dois adolescentes de 16, apreendidos.
Confrontos no Peru de viés ideológico são financiados por narcotraficantes
Os recentes confrontos no Peru entre sindicalistas, trabalhadores rurais e indígenas da etnia Aimara contra as forças de segurança peruanas, do ponto de vista geopolítico, são um ponto fora da curva no histórico de nação ordeira e pacífica, como é conhecida a vizinha brasileira.
Os atos que tentam trazer de volta ao poder o presidente Pedro Castillo, preso no dia 7 de dezembro passado ao tentar destituir o Congresso e proclamando um autogolpe, no entendimento de estudiosos do assunto são na verdade um gatilho para tentar desestabilizar o estado nacional, criando territórios autônomos a partir da incitação ao caos, cujos favorecidos direto serão narcotraficantes financiadores de povos tradicionais que cultivam a folha de coca e o epadu, esta última uma variação da espécie da planta só cultivada nas planícies amazônicas.
Numa visita rápida aos fóruns de discussões do assunto em língua espanhola na internet, foi possível ao AcreNews entender que as revoltas, os confrontos e as revoluções populares são financiadas pelo narco, para que possam ser levadas a cabo.
“O narcotráfico tem essa condição, a de financiar milícias com grandes somas de dinheiro, cuja finalidade é instalar o caos trazendo benefícios imensuráveis para o crime organizado”, afirma o professor secundarista Guillermo Lompuy Rodriguez, que se apresenta como sendo de Potossi, na Bolívia.
Ele cita que já existe um monopólio de bilhões dólares dos grandes criminosos sobre as populações tradicionais, aquelas que cultivam a folha da coca ou do epadu de forma cultural.
“Se um saco de 50 quilos da folha é vendido a 6 pesos bolivianos nos mercados municipais, o narco paga de 10 a 15 pesos no mesmo saco de 50 quilos para processamento do alcaloide que originará a droga”, pontua o educador.
Por isso, para o boliviano, não é à toa que os Ponchos Rojos – milícia composta, sobretudo, por reservistas aimarás do Exército Boliviano –, tenham sido vistos desembarcando nas cercanias de Porto Maldonado, no último dia 12 de janeiro, quando 36 brasileiros tentavam deixar a cidade para retornar ao Acre, numa operação coordenada pela Polícia Nacional do Peru com o apoio do Gabinete de Gestão Integrada de Fronteiras, da Secretaria de Segurança do Acre.
Na semana passada, os Ponchos deixaram a região andina boliviana de Omasuyos para engrossar as fileiras de manifestantes contra a prisão de Castillo, que também é de etnia aimará. Armados de facão e bastões, desembarcaram num caminhão e passaram a ferir quem estava nas ruas. A Inteligência da polícia peruana culpou o presidente da Bolívia, Evo Morales por infiltrar esses milicianos no seu território nacional.
Uma experiência com Deus: como o evangelismo de rua e a conversão de ‘soldados do crime’ a ‘soldados de Cristo’ minimizam as mazelas sociais
Beco sem nome. Bairro Boa União. Baixada da Sobral. Relógio marca 7h10 do dia 12 de outubro de 2022. João, 30 anos, [nome fictício, mas de idade verdadeira] ainda escova os dentes quando policiais armados com fuzis entram pelo caminho estreito em direção à casa. Encontram um vizinho de meia idade no caminho. Um agente olha nos olhos do homem e leva o dedo indicador direito próximo da boca e do nariz. “Psiuuu!”. Pede silêncio ao transeunte. A ideia é surpreender, entrando sem fazer barulho na casa, a menos de 10 metros dali.
João põe o rosto à porta. Toma um susto. “Perdeu. Perdeu. Perdeu. Mãos na cabeça”, dispara o chefe da operação, apontando a arma para o cabeleireiro, que apesar de surpreso, mantém a calma.
“Vamos sacudir teu barraco, entendeu? Se encontramos alguma coisa tu tá fu**** de novo”, vocifera um dos policiais ao morador, sentenciado a 17 anos de prisão por duas condenações por tráfico de drogas, e atualmente no regime semiaberto com tornozeleira eletrônica, após quase seis anos cumprindo pena em regime fechado.
Quase 40 minutos desde que entraram na casa, nenhum vestígio de entorpecentes foi encontrado. Decepção para os agentes de segurança. “Cadê a arma, onde tu esconde a arma”. “Tá aí a arma”, responde. “Onde, porr*?”. “Tá em cima do rack, ao lado da TV”, retruca João, apontando para a Bíblia Sagrada.
Cessam os palavrões. A pressão dos policiais acaba com um elogio.
“Bom, garoto. É assim que tem de ser. Continue desse jeito. Parabéns”, diz o chefe da blitz, comandando a saída de seus subordinados que desapareceram no beco com a mesma velocidade com que chegaram.
João era dependente químico. Quando não se drogava, vendia a droga para prestar contas com a facção. Era membro do CV. Morreu para o crime na enésima vez em que jovens obreiros da Igreja Evangélica o visitaram, atravessando cercas quebradas e se arriscando a levar tiros de outros faccionados. Renasceu para a vida dentro de um templo evangélico onde hoje é líder de uma célula com a esposa, que reúne pessoas das mais diversas possíveis, inclusive dependentes químicos como ele foi.
Pelo estatuto do crime, não há outra forma de deixar os serviços se não pela morte ou pela adesão aos ensinamentos cristãos da Igreja Evangélica. Por isso, o trabalho de recuperação das pessoas por meio da evangelização continua o mesmo. Mas agora, muito mais voltado para a pacificação pela conversão de ‘soldados do crime’ que pedem para tornarem-se evangélicos. Então, eles viram ‘soldados de Cristo’.
A um dia antes da transferência do ‘Chapão’, a barbárie eclode nos pavilhões do Norte
No dia 17 de outubro de 2016, o terror surgia nas celas da penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista (RR). Os réus do pavilhão 14 entraram na ala 12, onde mantiveram 50 familiares de presos como reféns, a maioria mulheres. A esposa de um detento relatou à imprensa que os invasores estavam armados com facas e pedaços de pau. Alguns foram decapitados, outros queimados vivos.
Horas depois, o presídio Ênio dos Santos Pinheiro, o ‘Urso Branco’, em Porto Velho (RO), registrava confronto parecido. Conforme as autoridades penitenciárias, oito presos morreram asfixiados pela fumaça decorrente do fogo ateado numa cela. Em Boa Vista, o massacre resultou em dez mortos.
No mesmo dia, na penitenciária Francisco de Oliveira Conde, em Rio Branco, quatro presos ficariam gravemente feridos. “Eu estava lá. Foi um dia de terror. Fiquei muito tenso com aquele barulho todo nas celas, mas também aliviado por Deus ter me mantido no pavilhão dos provisórios, o Chapão, o pavilhão ‘A’, o único que estava tranquilo. Tinha acabado de chegar e a minha transferência para um dos pavilhões em rebelião. Ela estava programada para o dia seguinte, o dia 18. Então, foi um livramento do Senhor. Deus tinha um propósito pra mim”, relembra João ao AcreNews.
Um dos episódios mais sangrentos na história do sistema penitenciário na região Norte se deveu ao fim do acordo de paz entre o CV e o PCC. Desde então, inúmeras execuções nas ruas da capital acreana foram protagonizadas pelos aliados PCC e B13 contra o Comando Vermelho até 2019. Todas com requintes de crueldade e filmadas por câmeras de celular. Hoje, em 2023, Bonde dos 13 e PCC já não são mais aliançados e seus membros estão se dizimando, embora em menor grau por causa das ações de Inteligência da Sejusp, do MPAC e das polícias já relatadas nesta reportagem, que conseguem frustrar os confrontos antes que eles aconteçam.
Mais de 1,8 mil recolhidos e subindo: presos por tráfico já são 23% da população carcerária no estado
A face mais terrível do crime de tráfico encontra representação no Acre em 10 das 16 unidades prisionais, mais precisamente em 23% dos 7.950 presidiários que compõem hoje a população carcerária no estado. Eles são 1.827 sentenciados, monitorados por tornozeleira eletrônica ou aguardando sentença por envolvimento de algum modo com o tráfico de drogas. Desse total, ao menos 1.671 são homens e 156, mulheres.
Trata-se da maior fatia da população carcerária, seguida pelos que respondem por crimes contra o patrimônio: 1.241, e os que praticaram delitos contra pessoas: 1.039.
A análise feita pelo AcreNews teve como base os dados carcerários do estado tabulados pela Gerência de Controle e Execução Penal, do Instituto de Administração Penitenciária do Acre, o Iapen/AC.
Para o ex-secretário de Justiça e Segurança Pública do Estado do Acre, coronel Paulo Cézar Rocha dos Santos, nos últimos dez anos, os indicadores no país mostraram cenários severos de violência promovidos pelas organizações criminosas em todos os estados.
“Mas, especialmente os [estados] de fronteiras ocuparam o ápice dessa violência, no último decênio”, ressalta o oficial da reserva da Polícia Militar do Estado do Acre e um dos maiores especialistas em Segurança Pública do país. Conforme Santos, se por um lado há uma guerra entre organizações criminosas por nacos de poder no fluxo da cocaína e da maconha que entra pelo Acre, “do outro existe o trabalho árduo e eficiente das forças de segurança estaduais e federais, nas nossas fronteiras com a Bolívia e o Peru, retirando de circulação uma incrível quantidade de entorpecentes e criminosos, todos os dias”.
A ideia de um trabalho mais próximo do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado do MPAC tem surtido o efeito desejado. Para ratificar o que diz, ele cita os números do Departamento Penitenciário Nacional, que foram analisados pelo time de técnicos, promotores e procuradores do Observatório de Análise Criminal, um setor do Núcleo de Apoio Técnico também do MPAC.
“Em junho de 2019, por exemplo, registramos a segunda maior taxa de aprisionamento do país, ficando atrás somente do Distrito Federal, com 754,1 presos por 100 mil habitantes”, afirma Rocha dos Santos. Neste mesmo período, a taxa média de aprisionamento nas penitenciárias do Brasil era de 384,7 a cada 100 mil moradores.
“Prendemos muito e com qualidade. Mas a oferta da mão-de-obra para o crime é enorme”, completa ele. O ex-secretário de Segurança ressalta que as organizações criminosas brasileiras já estão profundamente enraizadas em cidades como Santa Cruz de La Sierra, Cochabamba e Riberalta, na Bolívia, e no Peru, em regiões como Puerto Esperanza, na nascente do rio Purus.
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A linha do tempo das organizações criminosas no Acre
1930
Seringalistas adotavam milícias para autoproteção ou para intimidar rivais; crimes de pistolagens, inclusive com ‘encomendas’ de mortes de patrões da borracha, eram comuns.
1940
Começa o segundo ciclo da borracha; indígenas são dizimados por pistoleiros arregimentados pelos donos de seringais, no começo da febre da borracha que alimentava com pneus de carros e aviões a 2ª Guerra Mundial. Naquela época, não eram raros capangas sanguinários ajustarem a mira de seus rifles Winchester com tiros na cabeça de seringueiros carregando fardos de borracha barranco a baixo, para serem embarcados em batelões.
1970
Na década do fim dos seringais, grandes estradas de seringa nativa dão espaço às pastagens. O boi entra, sai o seringueiro. A pecuária trazida do sul e do sudeste faz surgir milícias sob o comando de latifundiários prontas para eliminar quem se atreve a se insurgir contra este novo modelo econômico. Milhares de sindicalistas e trabalhadores rurais são ameaçados. Muitos são assassinados.
1980 – 1994
Período obscuro da história do Acre quando por uma década inúmeros crimes bárbaros foram perpetrados por integrantes de um suposto ‘esquadrão da morte’. O grupo de criminosos foi rotulado, inicialmente, com a pecha de que eliminavam bandidos. A milícia, no entanto, foi ganhando força com a adesão de mais membros e começou a matar sob encomenda, não importando se a vítima não tinha passagem pela polícia. Entre as execuções mais bárbaras está a do mecânico Agilson Firmino, o ‘Baiano’, que teve braços e pernas decepados por um motosserra. Na foto acima, o procurador do Ministério Público Federal Luiz Francisco de Souza, que esteve irmanado com os promotores e procuradores do MPAC no combate ao crime organizado à época.
2012 – 2023
A luta agora é contra uma horda de bandidos que todos os anos geram uma receita bilionária, num modelo de negócio focado essencialmente numa grande rede para o tráfico de drogas, em território nacional e estrangeiro. Neste submundo, vale tudo: do suborno a autoridades com gordas quantias a execuções sumárias com a anuência de lideranças atrás das grades, nos presídios do país.