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Artigo| O Carimbador Útil

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Dr. Fares Camurça Furtado

Chegara o grande dia!

Zerbini finalmente seria recompensado por tantos anos de estudos. O dia tão almejado raiara no palco da realização profissional. Era sua colação de grau como médico na UnB. De beca e capelo subiu a plataforma e recebeu das mãos do diretor da Faculdade de Medicina o Diploma de Médico. Mais um sonho realizado!

No dia seguinte compareceu à Cerimônia de entrega do seu CRM. O tão sonhado carimbo agora era uma realidade iminente. A presidente do Conselho passou às mãos de Zerbini a carteira de médico, com o número de sua inscrição no CRM-DF: 451317. Corria o ano 2030! Apesar do crescimento exponencial de médicos no Brasil ainda havia espaço para o Dr. Zerbini atuar e subir degraus na profissão hipocrática.

Chegou o dia tão esperado!

O dia do primeiro plantão! Depois de tantos meses no estágio necessitando do carimbo do preceptor para validar suas minuciosas prescrições médicas, agora o Dr. Zerbini teria o seu próprio carimbo, sua licença para prescrever, que não fora adquirida por dinheiro, mas por meio de esforço e muito estudo.

Ao chegar ao Hospital Santa Bárbara foi bem recebido por conhecidos da faculdade e encaminhado ao consultório médico.

Atendeu dona Patrícia, que somente queria renovar sua receita de Zolpiden! Enquanto iniciava sua anamnese, Zerbini foi interrompido pela paciente, afirmando que estava atrasada para um compromisso e que só precisava da receita, não queria ser consultada. Zerbini cedeu e carimbou sua primeira receita! Um momento ímpar em sua vida. Pensou: “na próxima, eu realizo uma anamnese decente”. Em seguida recebeu um paciente com quadro de erisipela e diante da gravidade das lesões resolveu fazer o internamento do senhor Clóvis. Colheu a anamnese, realizou o exame físico e fez sua prescrição de 17 itens. Estava orgulhoso com o trabalho realizado! Quando se dirigiu à enfermeira Anna para entregar sua prescrição, foi questionado a respeito do diagnóstico. Ele respondeu: “É erisipela, enfermeira Anna”. Ela disse:

  • O protocolo para Erisipela é o de número 18, presente no computador do consultório. Não se deve utilizar nenhum item além do que está no fluxograma.

Dr. Zerbini voltou ao consultório, imprimiu o modelo de prescrição para erisipela e descartou sua prescrição anterior, que ao seu ver era mais específica e mais condizente com o quadro do paciente. Um incômodo passou a se instalar na mente do jovem médico: “Afinal, quem decide o que será feito com os pacientes?”.

Voltou-se para o consultório e passou a atender vários pacientes que apresentavam quadro de síndrome diarreica. Para boa parte deles, Zerbini prescreveu hidratação venosa, muitas vezes já sugerida pelos próprios pacientes: “Dr., o senhor vai passar soro, né?”. No meio de uma das consultas foi interrompido pela direção, que lhe notificou a necessidade de restringir a prescrição de hidratação venosa. Havia poucos equipamento e o estoque de soro já estava no final. Ficara entre a cruz e o punhal! Entre o ultimato da direção e a necessidade da prescrição. Entre a vontade do paciente e sua real necessidade!

Quando já estava findando o plantão, Zerbini recebeu em seu consultório cerca de 10 receituários de controle especial já preenchidos, tendo sido advertido pela funcionária com a seguinte declaração: “a direção mandou o senhor carimbar esses controlados de pacientes que estão precisando do remédio, mas que estão sem médicos em seus PSF´s”. Zerbini redarguiu:

  • Eu preciso consultar esses pacientes para poder prescrever os controlados.
  • Aqui não se faz assim, Dr. Nosso serviço precisa fazer estas receitas, caso contrário os pacientes ficarão sem o remédio já hoje – falou com vigor a técnica Cláudia Nery.
  • Vou fazer hoje, mas da próxima vez eu posso até emitir o receituário de controle especial, mas exigirei a presença do paciente neste consultório – disse Zerbini com firmeza, enquanto passou a carimbar as receitas.
  • Dr., aqui quem faz as exigências é a direção. O senhor só precisa carimbar – respondeu Cláudia levando o pacote de receitas em suas mãos.

Nos dois primeiros meses de trabalho, Dr. Zerbini emitiu muitos laudos já preenchidos por técnicos, pacientes e diretores. Recebeu a visita de advogados pedindo a emissão de laudos a serem confeccionados com urgência tendo em vista que seus clientes teriam audiência no INSS no dia seguinte; recebeu pacientes que exigiam fármacos específicos, com diagnósticos já estabelecidos via Google. Quando se negava a fazer a vontade de seus pacientes ou colegas de trabalho um clima de insatisfação automaticamente era gerado.

Para muitas de suas condutas sempre encontrava um acompanhante exigente afirmando que não concordava com aquela prescrição; sua autonomia nos serviços onde trabalha estava subordinada aos fluxogramas institucionais. Ir contra um fluxograma, mesmo com boa argumentação científica, era pedir para ser demitido.

Após alguns anos de profissão, Dr. Zerbini chegou à conclusão de que não era mais um médico; havia se transformado em um burocrata da Medicina, que tinha licença para prescrever o que a burocracia médica e a indústria farmacêutica lhe diziam para prescrever; seu CRM não valia mais pelo número em si (45 13 17) nem por sua competência profissional, mas pela utilidade de servir às conveniências dos grandes serviços, da indústria farmacêutica e de pacientes exigentes.

O fatídico dia chegara!

Percebeu que não era mais um médico, apenas um carimbador útil!

Zerbini finalmente percebeu que a triste realidade que tanto estudara nos escritos de Jeremy Benthan e John Stuart Mill se faziam presentes na sua própria experiência clínica. O valor de algo está em sua utilidade, neste caso o bem-estar e a felicidade do chefe, paciente, advogado ou farmacêutico. Descobriu que suas ações não tinham valor em si; que seu conhecimento científico não tinha importância absoluta; o que importava era como isto poderia satisfazer aos interesses das pessoas.

Não precisava curar ou tratar ninguém; bastava passar o esquema terapêutico desejado por terceiros.

Em 2040, após 10 anos de profissão, chegara o emblemático dia da renúncia. Não seria mais um carimbador útil dos interesses alheios. Juntou-se aos doutores Heleno Pitanguy, Pedro Uip e Mauro Kallil para fundar o Hospital Árabe-Chinês do Brasil.

Finalmente descobrira a realidade última de sua profissão, graças aos ensinos de Benthan e Mil: agora teria centenas de carimbadores úteis trabalhando para si! A moeda se invertera; o poder e o dinheiro estavam em suas mãos. Não cria mais em Hipócrates; agora era um bom discípulo de Mamon, um verdadeiro utilitarista que não abria mão da bela função médica de “carimbador útil”, desde que os “carimbadores” fossem seus funcionários!

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