ARTIGO
A primeira alagação a gente nunca esquece e a lembrança nos faz solidários
Eu deveria ter quatro ou cinco anos de idade quando nossa casa foi tomada pelas águas do rio Acre no Taquari. Fomos todos levados para um abrigo na Cidade Nova e quando retornamos não havia mais sequer um colchão para dormir e tivemos que nos resignar e aguardar pela ajuda do Estado. Em 1988, quando Rio Branco enfrentou uma alagação histórica, eu tinha 10 anos de idade e vivia nas ruas do entorno do Mercado Elias Mansour.
Participei, destemidamente e com orgulho, de centenas de travessias de canoa sem motor para socorro às famílias e seus animais expulsos de suas casas das duas margens, no Cadeia Velha e no Seis de Agosto. Minha família, na ocasião, já morava longe das margens do rio, no Conjunto Esperança, de modo que, não precisei me preocupar e pude me dedicar totalmente aos mutirões ao redor do Mercado.
Aquela inundação foi histórica não apenas pelo tamanho e pela dor das vítimas, mas também pelo escandaloso sumiço das doações que vieram de todo o mundo e nunca chegaram às vítimas. Jamais provei do sabor dos famosos biscoitos da Dinamarca que teriam sido enviados ao Acre como um presente diretamente do rei, segundo nossos ouvidos de criança acreditavam.
De acordo com rumores da época e que permanecem ecoando até os dias de hoje, os políticos guardaram colchões, roupas e alimentos para distribuir quando as eleições se aproximassem dali a seis meses, deixando milhares de famílias sem ter aonde dormir, o que comer e vestir.
Graças a Deus e ao bom senso isso não acontece nos dias atuais, mas alguns políticos ainda tiram proveito deste infortúnio, distribuem doações e postam as imagens nas redes sociais. Leio diversos posts acusando ou insinuando este oportunismo. Concordo com eles, mas não podemos generalizar.
Eu me tornei um político, tive algumas centenas de votos, nunca fui eleito, mas não me incluo entre os oportunistas e nem acuso terceiros que, como eu, viveram ou ainda vivem a vida nas margens dos rios e igarapés. Quem já foi expulso da cama pelas águas nunca esquece e jamais abandona os semelhantes.
Janes Peteca é policial penal e militante digital