POLÍTICA
Isolado na bolha, Lula afasta parte do eleitorado e vê queda de aprovação
Logo após assumir seu terceiro mandato na Presidência da República, Lula ganhou um presente de Jair Bolsonaro, a quem derrotou na eleição mais acirrada desde a redemocratização do país. A invasão e a depredação das sedes dos três poderes, em 8 de janeiro de 2023, desgastaram seu principal adversário político, retraíram o bolsonarismo e permitiram ao petista — sob o pretexto de defender a democracia — estreitar laços com representantes do Judiciário e do Legislativo e até com políticos da oposição. Na esteira de uma fracassada articulação golpista, abriu-se uma janela para a pacificação do país e consolidou-se um ambiente de boa vontade com o mandatário, em nome da reconstrução nacional. Experiente, Lula aproveitou a oportunidade e conseguiu aprovar projetos importantes no Congresso, recuperar programas sociais e fazer a economia crescer acima do esperado pelo mercado. Esses resultados levaram-no a acreditar que o governo era um sucesso — se não de crítica, ao menos de público. Com fama de infalível dentro do PT, o presidente errou na avaliação e tem sido, ele mesmo, o catalisador do desgaste de sua gestão.
Desde o ano passado, as imagens de Lula e do governo estão derretendo, como resultado do confronto entre duas realidades. A realidade paralela da bolha de esquerda e dos sabujos do Palácio do Planalto, que não têm coragem para contestar o chefe e aplaudem recaídas ideológicas e receitas já testadas e reprovadas. E a realidade das ruas, nas quais há preocupação com a segurança pública, o avanço da dengue, a carestia dos alimentos e o fantasma da corrupção. Na pesquisa Genial/Quaest, a aprovação ao trabalho de Lula caiu no final de fevereiro ao menor nível desde o início do terceiro mandato, 51%, enquanto a reprovação alcançou a maior marca, 46%. No levantamento do Ipec, a avaliação positiva do governo também registrou seu pior resultado, 33%, uma situação de empate técnico com a avaliação negativa, 32% (veja os quadros). Os números obrigaram o presidente a se curvar à voz das ruas. Em entrevista ao SBT, ele reconheceu que o governo estava “muito aquém” do prometido, mas emendou com o otimismo de praxe: “Até agora, preparamos a terra, aramos, adubamos e colocamos a semente. Cobrimos a semente. Este é o ano em que vamos começar a colher o que plantamos”.
Antes das pesquisas, a autocrítica era uma raridade no Palácio do Planalto. Encastelados, alguns dos principais assessores presidenciais minimizavam os focos de desgaste, que, segundo eles, teriam impacto negativo menor do que os dividendos gerados por uma série de dados econômicos positivos, como o crescimento do produto interno bruto (PIB), do emprego e da renda do trabalhador. Nesses indicadores houve de fato avanços, mas, mesmo assim, a percepção da população sobre a economia degringolou. Do total de entrevistados pela Genial/Quaest, 38% disseram que a economia piorou nos últimos doze meses, e apenas 26% afirmaram que melhorou. Foi uma inversão do quadro, já que, em dezembro passado, 34% declararam que a economia havia melhorado, enquanto 31% responderam o contrário. Em reação a esse cenário, alguns petistas reclamaram de uma suposta “dissonância cognitiva” do povo, que não estaria percebendo as conquistas econômicas ou dando o devido crédito ao governo por elas. Outros quadros, de perfil mais técnico, responsabilizaram o aumento do preço dos alimentos pela deterioração das expectativas da população. É uma discussão importante, mas não dá a dimensão do tamanho do problema.
Mesmo se houvesse entusiasmo popular com os rumos da economia, nada garante que a avaliação do governo resistiria à queda. Num país polarizado como o Brasil, com posições tão cristalizadas e antagônicas, outros temas ganharam relevância. Segundo a pesquisa AtlasIntel, os principais problemas apontados pela população são “criminalidade e tráfico de drogas” e “corrupção”. Em terceiro lugar, com uma quantidade bem menor de menções, aparece o quesito “pobreza, desemprego e desigualdade social”. Esse ranking retrata bem o desafio de Lula. Até agora, a gestão do petista não apresentou um plano consistente para a segurança pública, sob o confortável argumento de que, segundo a Constituição, a área compete aos estados. No ano passado, o governo até anunciou medidas para reforçar a vigilância em portos, aeroportos e fronteiras. Ficou nisso e não conseguiu reduzir a sensação de insegurança da população, que, conforme um antigo conselheiro de Lula, pode explicar a queda da avaliação positiva do governo entre os mais jovens, que foram fundamentais para a vitória do PT em 2022.
Do outro lado da trincheira, o bolsonarismo usa a pauta da segurança pública para desgastar o presidente. Recentemente, comissões do Senado aprovaram um projeto que endurece as regras de saídas temporárias de presos da cadeia e uma proposta de emenda constitucional que criminaliza porte e posse de drogas. Em ambos os casos, os aliados de Lula não impuseram resistência, com medo de prejudicar ainda mais a imagem do governo. Com a ajuda das redes sociais, onde reina de forma soberana, a extrema direita lança mão também de uma pauta moral, na qual se destacam temas como o aborto, para fustigar o presidente, que até aqui não conseguiu conter a sangria. A rejeição a Lula entre os evangélicos, por exemplo, bateu recorde e chegou a 62%, de acordo com a Genial/Quaest. Apesar da ofensiva bolsonarista, a desidratação de Lula não decorre principalmente da campanha de desconstrução coordenada pelo principal adversário político. É o petista, e não o capitão, o dínamo do derretimento da imagem do governo.
Como se sabe, Bolsonaro não resistia à tentação do cercadinho, onde entoava teorias da conspiração, insuflava apoiadores radicais e comprava brigas diversas — com a ciência, o Judiciário etc. Lula não tem um cercadinho propriamente dito, mas quase nunca sai da bolha da esquerda, o que — somado ao fato de não ter mais ao seu lado conselheiros com intimidade e peso político para confrontá-lo — faz com que dispare tiros a esmo no próprio pé. A preocupação popular com a corrupção tem relação direta com o desmonte da Lava-Jato, que, registre-se, começou em gestões anteriores. O presidente nunca fez um mea-culpa sobre o monumental esquema de corrupção descoberto pela operação e insiste na tese de que tudo não passou de uma conspiração internacional destinada a quebrar empresas brasileiras e derrubar o governo do PT. “Tudo o que aconteceu neste país foi uma mancomunação entre alguns juízes, alguns procuradores, subordinados ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos, que queriam e nunca aceitaram o Brasil ter uma empresa como a Petrobras”, discursou Lula ao visitar a Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco.
Numa mesa de negociação aberta pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça, no final de fevereiro, as empreiteiras que protagonizaram o petrolão começaram a renegociar seus acordos de leniência com órgãos de controle. Apesar de terem confessado seus crimes anos atrás, receberão refrescos bilionários em suas multas, tudo sob a bênção do presidente da República. Não dá para reclamar depois de “dissonância cognitiva”. Há outros casos de grande repercussão em que Lula contrata desgastes por conta própria. Na política externa, seus dois desatinos mais recentes foram comparar a ação do exército de Israel em Gaza ao Holocausto e endossar o ditador Nicolás Maduro, ao dizer que haverá eleições na Venezuela e omitir que a candidatura da oposicionista mais competitiva foi vetada (leia a entrevista nas Páginas Amarelas). Apesar de até aqui apoiar a política econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que volta e meia enfrenta o fogo amigo do PT, o presidente também sabota a administração quando insiste em receitas de seu partido que já foram testadas e reprovadas. Entre elas, intervencionismo estatal em empresas de economia mista e até privadas.
Como parte de seu plano de redimir antigos companheiros, Lula tentou emplacar o ex-ministro Guido Mantega na Vale. Até agora, não conseguiu — e também não desistiu. A confusão sobre o pagamento de dividendos extras pela Petrobras (leia mais na pág. 50) também fez reviver o temor de que o Planalto tente aumentar o nível de ingerência em grandes companhias. Tem tudo para dar errado, como deu no passado. O caso da Petrobras, por sinal, é um exemplo perfeito da falta de coordenação dentro do governo. O ministro Alexandre Silveira, de Minas e Energia, e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, eram contra o pagamento dos dividendos extras. Já o CEO da Petrobras, Jean Paul Prates, e o ministro Fernando Haddad eram favoráveis. A primeira dupla prevaleceu. Até aí, tudo bem. O problema é que Lula só chamou todos os envolvidos para debater a questão depois de anunciada a decisão e da consequente perda bilionária do valor da empresa.
Entusiasmado com o sonho de se tornar um líder global, o presidente tem mostrado cada vez menos disposição para cuidar dos assuntos do dia a dia da administração. Segundo seus próprios aliados, esse pode ser um dos motivos para a falta de uma marca nova para o seu terceiro mandato, que é sustentado por enquanto por programas lançados em gestões anteriores, como o PAC, o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida. Na terça-feira 12, ele prometeu entregar mais 100 institutos federais de educação, como fizera em 2008. Essas iniciativas são meritórias, mas podem não ser suficientes em termos de recuperação e consolidação de popularidade. O mundo mudou. As demandas e os desafios também. Diante do choque de realidade dado pelas pesquisas, Lula pretende concentrar esforços na agenda interna e percorrer o país para anunciar projetos e obras. Na próxima semana, deve fazer uma reunião ministerial, em que pedirá à equipe que pise no acelerador e entregue resultados.
Nos últimos dias, como ocorre quase toda vez em que uma gestão se sente acossada, voltou a ganhar corpo nos bastidores a ideia de aumentar os gastos públicos. Setores do PT defendem há tempos essa medida, que pode ter impacto nefasto em juros e inflação, por exemplo. Com o aumento da arrecadação registrado no início do ano, Lula voltou a aventar essa possibilidade. De novo, uma receita já testada e reprovada. O presidente, que superou diferentes crises em sua carreira política, pode fazer ajustes aqui e ali, mas só retomará o rumo, segundo um antigo e experiente conselheiro, se voltar a discursar e decidir levando em consideração a frente ampla formada em torno dele para derrotar Bolsonaro. Recaídas ideológicas, sectárias e populistas até rendem aplausos fáceis na bolha de esquerda, mas não agradam ao eleitorado médio, que, apesar de espremido entre as duas massas de eleitores polarizados, decidiu a eleição de 2022 — e certamente decidirá a de 2026.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884