Connect with us

RAIMUNDO FERREIRA

“Passagem de pinto para frango” é tema do artigo desta quinta-feira do professor e arquivista Raimundo Ferreira

Publicado

em

PASSAGEM DE PINTO PRA FRANGO

Raimundo Ferreira

Seringal São Francisco do Iracema, colocação Sedeia, nas margens do Igarapé Caipora. Esse endereço não consta no mapa da região, nem nos cadastros dos correios, portanto ali não chegava correspondência nem tampouco encomenda. Foi nesse local que vivi a pré-adolescência. Era analfabeto, disposto a sobreviver e a seguir em frente. Não usava tênis de marca famosa (somente sapatos de seringa), não usava boné de marca (somente chapéu de propaganda para proteger a cabeça), não usava bermuda de marca (somente calção improvisado e comprido para proteger as canelas dos espinhos), não usava camisetas de grife (somente camisas de saco e de tecidos listados (todas impregnadas e grudentas do látex das seringueiras), não tomava sorvete, não comia chocolate, não merendava mcfeliz, ou Mc com duplo hambúrguer, acompanhado de Coca-Cola, não saboreava o medalhão de filé mignon ao molho chimichurri… mas degustava iguarias da localidade: veados, caititus, antas, tatus, pacas, cotias, macacos, nambus, jacus, jacamins, cujubins, mutuns, siricoras, aracuans entre outras, tudo ao Milk da castanha. Também não imitava o corte do cabelo, nem as tatuagens dos ídolos da época. Não brincava com vídeo game, nem com qualquer outro brinquedo eletrônico e nem sonhava em usar um telefone. Meu brinquedo era uma baladeira com bornal de bolotas de barro secas ao sol que, além de ser objeto da brincadeira, servia como arma e instrumento de sobrevivência. Além disso, o treinamento prático era realizado com os utensílios e objetos de trabalho, ou seja, as brincadeiras já faziam parte da iniciação, ou melhor, eram divertimentos que funcionavam como ritos de passagem e aprendizado fundamental para a sobrevivência futura. Não sei se lamentável ou felizmente nada disso viralizou. De qualquer modo, como dizia Chicó, personagem do Auto da Compadecida, “só sei que foi assim” e ainda bem que meu pai não foi enquadrado na lei de exploração da mão de obra infantil e nem denunciado pelos agentes dos direitos humanos. Pelas circunstâncias da época, as coisas deveriam acontecer exatamente daquela forma e a vida tinha que fluir naquele ritmo. A experiência foi válida e o aprendizado foi muito útil. Naquela fase, como se dizia no seringal, os meninos estavam passando “de pinto pra frango”. Os sonhos e as expectativas giravam em torno de aprender a trabalhar, imitando os pais, aprender a usar a arma de fogo (espingarda) dos pais. A atividade de caçar, de abater animais para alimentar todos da casa, conferia um status de herói ao menino, que se sentia importante e útil para a família. Da mesma forma, o trabalho dos pais era motivo de orgulho e satisfação. Afinal, era por meio dele que seria possível obter ganhos financeiros, frutos de seu próprio esforço. Dessa forma, o menino já começava a catar castanha na época da colheita, a cortar seringa. Imitando seus pais, ia ganhando confiança e sentindo-se habilitado para atuar como um autêntico seringueiro. Foi assim, da forma mais natural possível para a época e da maneira mais seringueira, na essência da palavra, que fiz minha iniciação no mundo dos adultos. No aprendizado da vida, na passagem de pinto pra frango.

Continue lendo

EXPEDIENTE

O Portal Acrenews é uma publicação de Acrenews Comunicação e Publicidade

CNPJ: 40.304.331/0001-30

Gerente-administrativo: Larissa Cristiane

Contato: siteacrenews@gmail.com

Endereço: Avenida Epaminondas Jácome, 523, sala 07, centro, Rio Branco, Acre

Os artigos publicados não traduzem, necessariamente, a opinião deste jornal



Copyright © 2021 Acre News. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por STECON Soluções Tecnológicas