RAIMUNDO FERREIRA
“Podemos arriscar a afirmação de que a culpa nasce da consciência”, escreve o professor Raimundo Ferreira neste sábado, 27
A CULPA
Raimundo Ferreira de Souz
O exemplo de que só temos culpa quando temos consciência da culpa é bem ilustrado na comparação com a criança. No início de sua experiência, ela faz tudo o que vem à imaginação, sem sentir remorso. Depois que alguém começa a repreender, apresentar as amarras das convenções, ela passa a ter consciência e se sentir culpada quando percebe que transgrediu os padrões. Trata-se, portanto, de uma analogia bastante significativa e, guardadas as devidas proporções — mutatis mutandis, como diz a expressão latina —, podemos arriscar a afirmação de que a culpa nasce da consciência.
Talvez fosse até mais correto dizer que, no caminhar da vida, se todos fossem inocentes, não haveria transgressão. Na verdade, se todos fossem inocentes, também não existiria o conceito de culpa nem o caráter punitivo associado à transgressão. Ou seja, os VVS’s — valores, virtudes e sabedorias — talvez nem existissem, ou ao menos não fossem considerados como convenções obrigatórias a serem respeitadas.
Segundo algumas correntes filosóficas que refletem sobre essas questões e outros padrões de comportamento e de organização social, é possível imaginar formas diferentes de vida. Não se pode afirmar com certeza como seria uma sociedade estruturada sobre a inocência, mas é interessante considerar essas hipóteses.
Por exemplo, em relação à preservação ambiental, acredita-se que, se os seres humanos se percebessem como parte intrínseca da natureza, não a poluiriam por livre vontade. Do mesmo modo, não haveria razão para praticar deliberadamente o desrespeito entre irmãos, pois isso não traria benefício algum. Assim, a solidariedade seria vivida naturalmente, como hábito espontâneo, e a cooperação mútua se tornaria uma prática saudável e duradoura para toda a comunidade.
São, contudo, visões remotas — formas de imaginar uma sociedade diferente, na qual os males que hoje afligem a humanidade poderiam até existir, mas sob outra perspectiva e em outra configuração.