ACRE
“Seu” Chagas Madeiro tem 80 anos e, esbanjando saúde, continua sendo o mais requisitado para construir embarcações, o que faz há 63 anos
Evandro Cordeiro
Os barcos são uma invenção do homem há milhares de anos, mas seu aperfeiçoamento só ocorreria cerca de 15 séculos antes de Cristo, por meio dos fenícios, pioneiros dos transportes fluviais, mesmo sob controversas. A sua exploração apressou o processo de civilização da humanidade. Aqui no Acre, sua utilização tem importância histórica, para não fugir à regra. A partir do primeiro ciclo da borracha, por exemplo, por volta de 1880, a economia dependia das nossas bacias hidrográficas. Assim, construir os bateis para levar e trazer o progresso era uma necessidade. E tivemos grandes artífices, construtores desse modelo de transporte. O Acrenews encontrou um remanescente, talvez um dos mais antigos, pelo menos em atividade. É um sujeito por nome de Francisco das Chagas Madeiro de Souza. Aos 80 anos, ele ainda é considerado o melhor fabricante de barcos do Norte do Brasil, requisitado em toda a região. Gabado por “Deus” e o mundo.
A história desse homem, que vem colaborando com o progresso do Acre por mais de seis décadas, “seu” Chagas, como é abordado carinhosamente no bairro onde mora atualmente, o Mocinha Magalhães, em Rio Branco, com a construção de barcos, certamente é a mais longa, daria uma ode. Senão vejamos: ele começou nessa atividade aos 17 anos, depois de perder um irmão assassinado, com o qual dividia uma colocação de seringa no seringal Atenas, alto rio Tarauacá, onde nasceu. Desiludido, decidiu fabricar um barco para mudar de ramo, deixando a seringa para trás. “Botei na cabeça que ia ser dono de embarcação”, vai contando. Como não tinha dinheiro para pagar um artífice, nem experiência nenhuma com a construção, teve a ideia de pedir ajuda a quem sabia, um vizinho considerado um ás no ramo, cujo nome era Nonato Neri, que vem a ser o pai da ex-prefeita de Rio Branco, Socorro Neri, atual secretária de Educação do Estado. “O Nonato prometeu me ajudar a fabricar meu primeiro barco, mas não apareceu no dia combinado. Só chegou lá em casa três dias depois, quando eu tava com a embarcação pronta. Ele perguntou quem tinha feito. Eu disse: eu. Ele não acreditou. Mas tinha sido eu mesmo. Ele ficou admirado. E daí por diante não parei mais. Era muita encomenda, uma atrás da outra”, conta seu Chagas.
Filho de uma família de 13 irmãos, o artífice do rio Tarauacá ganhou uma profissão meio sem querer e não largou nunca mais. Bem dizer, criou a família fazendo isso. Mesmo aos 80 anos, já aposentado, Chagas esbanja saúde e, naturalmente, disposição para ainda continuar fazendo o que gosta, construir esses troços que deslizam sobre as águas. E melhor: ganhando dinheiro. Sem tanto esforço, em três dias ele constrói uma canoa de cinco metros a qual não entrega por menos de R$ 1,5 mil. Houve um tempo, diz ele, em que uma embarcação como essa ele fazia em um dia de serviços. “Uma vez o Chico Sombra (ex-deputado) chegou lá em casa e perguntou se eu tinha como fazer uma canoa para ele em dois dias. Eu disse a ele: venha hoje à tarde. Quando ele chegou eu tinha terminado. Já tava até pintada. Ele não acreditou. Me disse: rapaz, tu ainda é o Chagas de Tarauacá mesmo”, conta com muito bom humor.
Chagas Madeiro conta que da colocação Parasim, no seringal Atenas, em Tarauacá, onde nasceu, até o bairro Mocinha Magalhães, em Rio Branco, sua residência atual, tem história que não tem livro que conte. Com sua compleição física de dar inveja em lutadores de MMA, sem nenhum cabelo branco na cabeça e uma disposição cavalar, seu Chagas é pai de 22 filhos, distribuídos em dois casamentos, dos quais apenas 14 são vivos. Patriarca de uma turma bem educada, alguns bem sucedidos, seu Chagas fez história e ainda parece disposto a continuar fazendo. Aliás, história e muitos barcos. Disposição não falta. O homem é tão duro que acaba de vencer a Covid-19 sem muito esforço. Teve a doença praticamente sem sintomas e, obviamente, sem nenhuma sequela. Está no lucro, no saldo, costuma dizer enquanto brinca com os amigos, se referindo a saúde e a vida longa. Por fim, abarca, católico fervoroso como poucos: “Vou longe ainda se Deus permitir”. Pelo visto Deus quer.
AS BARCAÇAS CONSTRUÍDAS PELO SEU CHAGAS
As seis décadas e meia construindo barcos deu a seu Chagas uma experiência medonha, o clássico know-how. Primeiro ele construiu embarcação de todo tamanho, tudo sempre com acabamento gabado pela freguesia. Segundo, sabe escolher a madeira certa para o barco certo. As canoas de pequeno porte são feitas de cedro, açacu e guariuba, diferentemente das maiores, cuja prioridade é usar madeira mais maneira, como a itaúba, o bálsamo, a massaranduba, o pequi e o gramixó.
Para erguer suas obras de arte ainda hoje o “mestre” Chagas se utiliza da forma mais artesanal possível. Ainda usa, por exemplo, a velha suta, uma espécie de esquadro capaz de assegurar as curvas em graus absolutamente iguais de um lado e outro do barco, o que é fundamental para a navegação segura. Outra ferramenta da qual não abre mão é a plaina manual, um objeto pesado feito de muito ferro com lâminas afiadas sob sua “barriga”. A tecnologia não é prioridade no estaleiro dele. “Uso pouco instrumento elétrico. Minhas ferramentas são praticamente o que eu usava há 50 anos”, conta com muita vantagem e com toda a razão, uma vez que não falta encomenda. Mal termina um trabalho e já tem outro na agulha. “Não falta freguês”, conta, entre uma piada e outra, sua principal diversão.
O estaleiro do seu Chagas é ao lado de sua casa, na rua Melancia, uma das principais do bairro. O lugar é pouco atrativo, simples, mas bem melhor que os estaleiros dos seringais. “Eu cheguei a fazer barragem em Igarapés para poder contribuir batelões e depois ‘despejar o bicho n’água’”. As condições eram mais difíceis que as atuais. Os detalhes do endereço dele não são muito importantes, segundo ele mesmo, por uma razão relembrar: nosso artífice é famosíssimo na região. Em qualquer lugar do bairro que se pergunta pelo “seu Chagas”, o construtor de canoas, dificilmente alguém não vai saber quem é.
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