ARTIGO
Das aldeias do Jordão até a conquista da carteira da OAB, a saga dos irmãos Kaxinawa Heliton e Ronaldo
Evandro Cordeiro
O cabeleireiro Ronaldo Adriano Souza Kaxinawa, cuja barbearia é localizada na região do bairro São Francisco, subúrbio de Rio Branco, está prestes a trocar a tesoura e o pente pelas peças de Direito que terá que produzir para defender seus futuros clientes. Aos 34 anos esse indígena nascido no seringal São José, município acreano de Jordão, perto da fronteira com o Peru, dias de viagem acima de Tarauacá, termina esse ano ainda seu curso de Direito em uma faculdade particular na capital do Acre, o qual custeia à base dos cortes de cabelo durante o dia.
Até terminar o curso no final de 2023, tem uma história tão longa, tão cheia de eventos inacreditáveis, que nada mais poderá surpreender o Ronaldo. Ele é o quinto filho de uma prole de 11 irmãos e para contar a história da vida desde as aldeias de Jordão até a véspera de receber o diploma de Bacharel em Direito é necessária uma tarde inteira. Lá se foram uma garrafa de café e um pacote de bolacha miragina, principalmente pelo fato de Ronaldo trazer a reboque um outro irmão, o oitavo dos 11, Heliton Kaxinawa, esse mais novo, mais já aprovado na OAB, aos 23 anos, em uma história bem explorada pela imprensa de Rio Branco, depois de ser descoberto pela reportagem do Acrenews.
Heliton foi aprovado pela OAB, mas antecipa que ainda terá que fechar o curso até o final deste ano. “Não sou advogado ainda. Preciso concluir o curso”, avisa, prudente, para não ser flagrado praticando antiética.
Até Heliton Souza vir parar em Rio Branco e estar se formando em Direito aos 23 anos, ele precisou do heroísmo do irmão Ronaldo. Esse viveu dificuldades capazes de fazer muita gente ter desistido de tudo antes da metade da história. Depois de ser vítima de uma injustiça da polícia no município de Tarauacá, acusado por um crime que não cometeu, Ronaldo decidiu naquele momento que só sossegaria quando virasse advogado e depois Juiz ou Delegado, quem sabe, ou até mesmo apenas militar na área defendendo pessoas. A questão é que nessa época ele já havia se casado em Jordão e tinha um filho, os quais sustentava cortando cabelo e tendo uma remuneração tão frugal ao ponto de só dar para comer. Ele sabia que, para realizar seu sonho, virando um advogado, precisava de sorte e coragem. Ele juntou as duas coisas ao chegar em casa, no Jordão, voltando de Tarauacá. Sentou com a esposa, combinou com ela para ficar aos cuidados de seu pai e irmãos, para que ele viesse se aventurar na capital do Acre a procura de estudo superior. Ela e todos da família tremeram, mas não impediram seu sonho.
Ao desembarcar em Rio Branco, Ronaldo Kaxinawa encontrou milhares de obstáculos a mais que os varadouros dos seringais São José, da colônia do Igarapé dos Índios, onde cresceu, e dos caminhos que levam da cidade de Jordão até o sítio Bimi, uma comunidade de indígenas, onde a família Souza Kaxinawa reside em sua maioria na atualidade.
Antes de vir para a capital, Ronaldo havia assombrado o pai, Francisco Ferreira e a mãe, Marilene Sereno Kaxinawa, com essas ideias meio porra-loucas, que era largar o ‘conforto’ de estarem nas aldeias, onde os ancestrais sobrevivem há séculos. Eles tinham medo dele sozinho em Rio Branco. “Eu encarei o destino e me mandei, mesmo com a preocupação deles”, conta Ronaldo.
Ao chegar na capital, com o ensino médio concluído em Jordão, feito conseguido também sob uma saga, porque teve que deixar a zona rural sozinho para poder fazer o segundo grau em Jordão, Ronaldo não teve alternativa, senão procurar ocupação naquilo em que se propôs fazer para sobreviver com esposa e filho, trabalhar em uma barbearia. Praticando esse ofício em um cubículo, alugando uma cadeira, tentou entrar pra faculdade de Direito. O dinheiro foi curto demais para cobrir as despesas e seu sonho precisou ser adiado outra vez. Mais na frente, com o próprio salão e uma clientela fiel, voltou pra faculdade e até o final deste ano conclui o que acredita ter sido a parte de sua história onde o fardo mais pesou, estudar cinco anos em uma faculdade de Direito, custeando as despesas as custas da barbearia.
A coragem de Ronaldo e sua proximidade da vitória encorajou a família a mandar o irmão mais novo, Helton, que chegou chegando, ao conseguir um feito raro, ser aprovado na OAB seis meses antes de concluir o curso, o que é legal. O irmão também sentiu na pele a dureza de quem nasceu em um lugar de improbabilidades, como os seringais e aldeias de um dos municípios mais isolados do Acre, Jordão, para onde só se vai de avião ou por água, viagem que dura, no mínimo, oito dias, dependendo da embarcação. No entanto, elogia o irmão, que o trouxe para morar consigo em um apartamento de um cômodo só, onde sua dormida foi estabelecida sobre um catre velho no ‘pé da parede’. Vestidos de paletó, com os cabelos muito bem aparados, brilhosos e rigorosamente na moda, ambos fazem estágio no conceituado escritório do advogado Kalebh Mota, em condições de enxergar a vitória logo ali. E avisam: tudo o que passaram até aqui servirá de lição para o futuro.