Mora na Filosofia
Coluna do professor-mestre Aldo Tavares: Quando os comunistas são traidores
QUANDO O COMUNISTA É TRAIDOR
De Aldo Tavares,
professor-mestre pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Nascido em 1935, agricultor e ex-guerrilheiro, José Mujica, após sua prisão (1971-1985), ocupou várias funções públicas, entre elas, presidente do Uruguai (2010-2015) e senador (2015-2018) pela Frente Ampla, partido de centro-esquerda; tornou-se famoso, porém, por causa de sua simplicidade. Mujica não se serviu de seu salário a fim de degustar vinhos caríssimos, a fim de residir em alguma mansão de um bairro nobre.
Quando presidente, recebia R$ 22.122, mil por mês, destinando R$ 15.485,40 (ou 70%) ao partido, ficando com R$ 6.636,60, só que não. Dessa quantia, Mujica doava R$ 3.836,60 a um fundo para a construção de moradias, ficando com R$ 2.8 mil. Sua luta por justiça social, portanto, jamais traiu os mais humildes do Uruguai; pois, ao falar em nome dos mais pobres, não usava ternos importados, carro do ano, aliás, se fosse acriano, Mujica não residiria em um dos m² mais caro de Rio Branco, Chácara Ipê. Quando guerrilheiro, nunca foi o traidor da própria luta.
Bem diferente de José Mujica, o Pepe, há aqueles que traíram a luta por justiça social até depois da ditadura civil-militar (1964-1985), e tais traidores pertenciam ao PCB e ao PC do B. Nossos maiores traiçoeiros, os comunistas. Isso não se trata de uma acusação sem prova, muito pelo contrário, porque tamanha prova, para ser apresentada ao tribunal da história, é consequência de uma pesquisa concluída após dez anos. O agenciamento-livro “Cachorros”, publicado em 2024 pela editora Alameda, prova, por meio de árduo estudo científico de Marcelo Godoy, que comunistas [traidores] entregaram seus camaradas à tortura, ao estupro, à morte. Após ler as páginas, trata-se de erro grosseiro ainda afirmar que apenas militares [reacionários, ilegalistas] arrancaram a vida de muitos, porque, como foram amigos da ditadura civil-militar, comunistas não passaram de um “meio” a fim de que militares chegassem ao “fim”. Úteis à extrema-direita, PCB e PC do B permitiram que dedos dos camaradas fossem cortados e seus dentes arrancados para que corpos não fossem identificados e, após isso, separando membros dos troncos, jogavam pedaços de corpos ao mar, às águas de rios. Comunistas sempre foram úteis à extrema-direita, bastando apenas ler “O 18 brumário de Luís Bonaparte” e “As lutas de classes na França”, agenciamentos escritos por Karl Marx.
SEVERINO THEODORO DE MELLO,
UM DOS COMUNISTAS QUE FOI AMIGO DA DITADURA CIVIL-MILITAR
Após ter relido “Cachorros”, concordo com Marcelo Godoy: Severino Mello, do Comitê Central do PCB, causou muito mais estragos à esquerda e à guerrilha da extrema-esquerda do que José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo. Mello é a excelência do traidor; entretanto, quando afirmo traidor, a amplidão profunda de seu sentido não se lê em nenhum agenciamento-livro de história ou de sociologia, na medida em que essas duas disciplinas não pensam o conceito. A episteme que pensa o conceito é a metafísica modal ou amodal e, no caso do conceito de traição, é a amodal, ou seja, a filosofia, apenas ela, pensa o conceito.
Na condição de traidor, Mello, o Pacato, chamava-se Vinícius, amigo do doutor Pirilo ou de Carlos Ilyich Sanches Azambuja, o capitão da Aeronáutica Antônio Pinto, um dos dois oficiais que controlaram o informante do PCB por 20 anos. Em sua luta “contra” o marxismo, o capitão chegou a publicar – que ironia! – artigos no órgão oficial do PCB, o jornal “Voz da Unidade” – um desses artigos, publicado em 19 de março de 1987 com o pseudônimo Carlos Azambuja, intitulava-se “O PCB se burocratizou”.
Essa tática do oficial da Aeronáutica, que substituiu armamentos poderosos, foi consequência de sua simpatia pelo coronel francês Roger Trinquier, um dos formuladores de “a doutrina da guerra revolucionária” com o coronel francês Gabriel Bonnet e com o tenente-coronel português Hermes de Araújo Oliveira, cuja natureza dessa doutrina, por ser infiltração, engano, mentira, delação, fichamento, vigilância, é a guerra sem guerra do “combate-entre”, e não do “combate-contra”.
Assim, sem armamentos, militares serviram-se da inteligência por meio de pequenas ações no lugar Menor, o que Michel Foucault chama de “microfísica do poder”, diga-se, poder molecular de um movimento estratégico que não obedece à lei do confronto entre desiguais: comunismo-militares, esquerda-direita, Mello-Pirilo.
Severino Theodoro de Mello tornou-se comunista em 1935 e, 39 anos depois, em 1974, o capitão Ênio Pimental da Silveira, o doutor Ney, do Departamento de Operações de Informações (DOI) do 2º Exército, submeteu Mello à condição de infiltrado, comunista que realizou dezenas de sequestros, de mortes, de prisões e de desaparecimentos que ajudaram a neutralizar “o seu” PCB nos anos 1970. Apenas em 2015, ficou nítido que Mello – ou o espião Vinícius – foi o mais importante dos traidores comunistas cooptado pela inteligência militar em toda a sua história e, embora tenha sido desligado do então PPS em 2016 – hoje Cidadania –, deixou de ser remunerado como traidor pelo Exército em junho de 2023. Faleceu aos 105 anos em Copacabana, tendo sido o traidor mais eficaz e mortal dos comunistas.
O QUE PODE O TRAIDOR?
Chamados pela ditadura de “cachorros” os traidores, Mello e cabo Anselmo foram os cachorros da melhor raça: puros sangues, pois representam a vitória absoluta da guerra sem guerra sobre guerrilheiros que tinham a certeza de que a guerra é conflito entre os opostos. Seguindo o pensamento de Platão no tocante à traição do pastor Giges, Nietzsche e Deleuze pensam o conceito de traidor de tal forma que história e sociologia não são as leituras mais profundas sobre o traidor, necessitando aprender com a filosofia.
É erro grosseiro afirmar que o traidor usa máscara; o traidor usa apenas o rosto, tão somente o rosto; e, por meio de seus traços, o traidor, sendo ele mesmo, é outro, ou seja, ele é nem ele mesmo um nem outro, porque o traidor movimenta-se “entre” os extremos, no caso, “entre” Mello-e-Vinícius, assim como “entre” Anselmo-e-Kimble. Quando a extrema-direita em forma de ditadura civil-militar dominou, Severino de Mello [ou o infiltrado Vinícius] e cabo Anselmo [ou o infiltrado Kimble] foram atores perfeitos no palco da história Menor, história essa que tem as marcas da microfísica do poder, que é, segundo Foucault, poder enigmático, porque é “visível e invisível, presente e oculto”, escreve o filósofo francês na página 75 do agenciamento-livro “Microfísica do Poder”.
O traidor é potência intermediária “entre” signos dessemelhantes, como Mello-e-Vinícius, que é o mesmo de claro-e-escuro ou de “visível-e-invisível”. O que pôde o traidor durante a ditadura? Ele não só conduziu Marighella, um só guerrilheiro, à morte na alameda Casa Branca, São Paulo, como conduziu muitos no Araguaia, Pará, e na chácara São Bento, Recife, porque o próprio traidor foi guerrilheiro-e-militar, sendo nem um nem outro. No caso da chácara, a guerrilheira Soledad Barret Viedma viveu, sob o mesmo teto e por quase um ano, com o “guerrilheiro” cabo Anselmo em Recife, que não só se identificou com a guerrilheira, sua inimiga, como sua inimiga o amou como a verdadeira amiga. Isso tem nome: poder molecular ou microfísica do poder.
O traidor, um “entre”. Leio Deleuze, Diálogos, e, a meus olhos, ele sussurra “é que trair é difícil, é criar. É preciso perder a identidade, o seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido”, sabendo que criar, perder a identidade, perder o rosto, desaparecer e desconhecido só é possível “entre”, pois, ao perder a identidade, ao perder o rosto, ao desaparecer e ao ser desconhecido, o traidor assegura sua identidade, assegura seu rosto, aparece e torna-se conhecido. O traidor é ser-e-não-ser, sendo nem um nem outro por estar “entre” o dualismo.
PC DO B, UMA MÁQUINA BINÁRIA
Sem seguir a linha fixa da identidade, o PCB alterou seu nome, passando a ser Cidadania; o PC do B, contudo, permanece com o mesmo nome, perpetuando o conceito de identidade, assim como seus representantes sustentam a identidade de a luta de classe, qual seja, ela é dualista: burguês-proletário, capital-trabalho, opressor-oprimido. Esse dualismo é reforçado pela dialética hegeliana, mas, segundo Henri Bergson, a dialética de Hegel é falsa, visto que o filósofo alemão pensa o movimento como conceito dualista, em que o não-ser se opõe ao ser. Assim como Newton foi superado por Einstein, Hegel foi superado por Bergson, já que o movimento, conceito primeiro da dialética, é indivisível.
Nesse sentido, que é o de manter o dualismo como luta política, diga-se, “luta-contra”, o PC do B é máquina binária a serviço do poder, como serviu ao aparelho do Estado na ditadura civil-militar. Quando digo servir, digo que a própria ditadura alimentava a imagem da oposição, motivava a “luta-contra”, o dualismo, e o PC do B foi muito útil para isso. Ainda que não houvesse oposição, a ditadura inventaria o PC do B, mas não precisou, porque o PC do B se fez para ser útil à ditadura civil-militar por meio de tantos traidores.
Mas por que a oposição? Confirmada a “luta-contra” como luta natural, a ditadura não se opõe aos comunistas, porque a “luta-contra” é não o “meio”, e sim o “fim”. Ora, para realizar a luta como sinônimo de “meio”, a ditadura imprime a “luta-entre”, tendo sido muito bem representada por Mello-e-Vinícius e por cabo Anselmo-e-Kimble. A potência da “luta-entre” é tão intensa, mais tão intensa, que Marighella identifica-se com a ditadura e, em razão de ele e de a ditadura serem uma coisa só, uma identificação mútua: o guerrilheiro obedeceu aos opressores, aceitando o encontro na alameda Casa Branca. Como máquina binária, Marighella foi útil ao aparelho de Estado desde o momento em que não houve oposição entre o senhor e o escravo.
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