PITTER LUCENA
Pitter Lucena, jornalista e escritor, homenageia uma lenda da arte do Norte brasileiro, Danilo de S’Acre
DANILO DE S’ACRE,
O CANIBAL DAS ARTES
- Pitter Lucena
Nas entranhas da exuberante Amazônia, onde a natureza se revela em toda a sua grandiosidade, vive um ser único e misterioso: Danilo de S’Acre, O Canibal das Artes. Seu olhar atento capta cada detalhe do mundo ao seu redor, sua fala mansa encanta e inspira, seu andar firme desbrava caminhos inexplorados, e sua destreza nas mãos traduz em obras de arte a essência da vida que pulsa na floresta.
Nascido e criado na bucólica colônia Custódio Freire, no coração do interior do Acre, em 1958, Danilo teve uma infância repleta de curiosidade e encantamento. Como toda criança curiosa, desejava tocar e conhecer tudo que se apresentava diante dele. O contato direto com a natureza proporcionava uma vivência única, moldando a sua forma de enxergar o mundo desde tenra idade.
Curioso por natureza e possuindo uma veia artística latente, Danilo ensaiou seus primeiros traços ainda na infância, valendo-se de carvão e barro como instrumentos de apoio. Essa conexão com a terra e os elementos naturais se tornaria uma constante em sua jornada artística, uma fonte inesgotável de inspiração e matéria-prima para suas criações.
Aos sete anos, a vida o levou a mudar-se para a Rua Quintino Bocaiúva e, posteriormente, para o bairro Estação Experimental. Na escola Neutel Maia, ele trilhava os primeiros passos rumo ao conhecimento e à sua paixão pelas artes.
Apesar de seu interesse precoce pela natureza e pela arte, foi somente na adolescência que Danilo teve seu primeiro contato com papéis e canetas. Influenciado pelos gibis e pelo cinema, mesmo sem saber ler, o jovem Danilo despertou um intenso interesse pelo mundo dos desenhos, um universo onde a imaginação podia correr solta.
Aos 18 anos, o destino lhe reservou um encontro marcante com alguns intelectuais da região, entre eles Genésio Fernandes, professor de Literatura da Ufac, e Dalmir Ferreira, um renomado artista plástico e poeta acreano. Essa experiência estimulou ainda mais sua paixão pelas artes, porém, na época, faltavam-lhe recursos materiais. Tela, quadros e materiais adequados eram raridades, mas Danilo era um verdadeiro alquimista da arte, e encontrava alternativas criativas como pasta de dente e mercúrio para expressar seu talento.
Ao ser dispensado de servir ao Exército Brasileiro, uma nova fase se desenhou em sua vida. Convidado por um amigo, aventurou-se em Brasília, onde estudou e trabalhou como cartazista e, posteriormente, como bancário. O contato com grupos de teatro inflamou ainda mais sua paixão pelas artes, alimentando sua alma criativa.
O chamado de suas raízes falou mais alto, e ele retornou ao Acre, onde sua arte encontrou terreno fértil para se desenvolver. Colaborando com o jornal O Varadouro, deu início a suas telas e ganhou notoriedade, levando sua arte para ser admirada em exposições no Nordeste e no Rio de Janeiro.
A Itália acolheu o Canibal das Artes com entusiasmo, e durante os 13 anos que permaneceu em terras italianas, Danilo mergulhou profundamente em sua arte. Aperfeiçoou suas habilidades, experimentou a abstração, misturou cores e explorou técnicas artísticas com mestres europeus. Sua arte, então, ganhou uma nova dimensão, em que elementos naturais da floresta amazônica se fundiam com o abstrato, criando uma produção artística única e impactante.
Danilo iniciou o curso de Artes Visuais na academia Roma, onde sua arte evoluiu e ganhou novas formas. Experimentos na área da abstração e a mistura de cores trouxeram a essência da Amazônia para suas telas. Em Roma, Ancona, Milão, Valletri, Reggio di Calabria e San Giovanni Rotondo, ele encantou o público italiano com seu talento inigualável.
Nessa jornada pela arte e pela vida, ainda na Itália, Danilo enfrentou desafios, chegando a ser morador de rua e sobrevivendo através de sua arte, desenhando com nanquim. Mas sua resiliência e dedicação à sua paixão o impulsionaram a seguir em frente.
De volta à sua terra natal, Danilo se estabeleceu como um artista consagrado, participando de exposições individuais e coletivas, compartilhando com o mundo a sua riqueza criativa. Sua arte, ancorada em materiais em sucata e elementos naturais, como folhas, sementes, fósseis, cipós e argila da floresta, é uma celebração da cultura regional amazônica e um mergulho na iconografia e no totemismo das culturas indígenas.
Danilo é um verdadeiro polímata das artes, produzindo quadros, gravuras, ilustrações e esculturas, encantando a todos com a sua essência amazônica. Seja na produção de uma ilustração, de um painel ou de um quadro, seu modo de ser é tranquilo, porém, o fazer artístico é uma jornada que começa muito antes do primeiro traço ou pincelada. Está na ideia que é revolvida e amadurecida na memória, e é ali que o instinto promove a invenção.
Seu estilo artístico é permeado por uma personalidade subjetiva, que enxerga além do que se lhe apresenta aos olhos, revelando em suas obras uma tradução particular de sua sensação interior. Como amigo, posso dizer que é um privilégio ter cruzado com Danilo em minhas andanças artísticas pelo Acre e por Brasília. Sua presença é como a força da própria natureza, sempre envolto entre pincéis e telas, recriando a vida em sua essência.
A família ocupa um lugar especial na vida de Danilo, casado com Antônia e pai de dois filhos, Iara Luna e João. Seu amor e dedicação aos entes queridos são evidentes, e sua arte reflete esse sentimento profundo.
Como um verdadeiro mestre, Danilo não apenas cria arte, mas também compartilha seus conhecimentos e visões sobre o mundo artístico em seus livros. Cada obra é uma manifestação não apenas de suas habilidades técnicas, mas também de suas reflexões e insights sobre a natureza humana e a arte que a expressa.
Danilo de S’Acre, O Canibal das Artes, é um gigante no mundo da criação, devorando as possibilidades criativas oferecidas pela vida e pela natureza. Com um coração generoso e uma alma apaixonada, ele nos presenteia com um legado artístico que transcende o tempo e as fronteiras. É uma honra e uma alegria ter esse ícone das artes contemporâneas como amigo, um ser que mantém viva a chama da criatividade e nos encanta com suas obras únicas e marcantes. Que seu legado continue a inspirar e alimentar a alma artística da humanidade por gerações vindouras.
Fotos: Altino Machado, Antônia Oliveira, Luna S’Acre, Val Fernandes
Pitter Lucena – Jornalista e escritor