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Com a palavra, Roberto Feres, engenheiro que conhece os problemas estruturais de Rio Branco; ele fala sobre transporte, saneamento e municipalismo

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Por Jorge Natal

Ruas escuras e esburacadas; enlameadas num período do ano e empoeiradas noutro; ausência de calçadas e pouquíssimas ciclovias; trânsito caótico; poluição sonora e visual; violência que já se estendeu ao campo; altos índices de consumo e tráfico de drogas; enchentes; desemprego. Bem-vindo a Rio Branco, uma cidade que não foi planejada, complexa e há décadas negligenciada.

Nascido às margens do rio Acre, este centenário local anualmente é alagado. O fenômeno causa prejuízos e transtornos para milhares de pessoas, que não possuem moradia digna. E se no Nordeste existe a “indústria da seca”, temos uma versão às avessas por aqui. Moradias? Além de não serem prioridade nas políticas públicas, quando acontece é de forma inadequada (vide Cidade do Povo).

Quando o assunto é saneamento básico, somos uma África. Segundo o Instituto Trata Brasil, estamos entre as capitais que mais despejam seus dejetos nos cursos d’água, sem tratamento prévio, obviamente. O marco regulatório, política nacional para pôr fim a essa mazela, ainda não chegou por aqui.

Os nossos vizinhos fronteiriços, o Peru e a Bolívia, os maiores produtores de cocaína do planeta, encontram aqui tudo o que precisam: jovens para consumir e traficar seus produtos. Não é por acaso que temos a maior e mais jovem população carcerária do país, proporcionalmente falando. A disputa por esse “mercado de trabalho” está estampada nas manchetes dos veículos noticiosos: diariamente, uma pessoa morre de forma violenta em Rio Branco.

Para falar de alguns desses infortúnios e também para apresentar soluções, conversamos com uma das maiores autoridades quando o assunto é infraestrutura: o engenheiro Roberto Feres. Oriundo de uma família tradicional de São Paulo, foi professor universitário por mais de duas décadas. Também foi gestor e atualmente é membro da polícia científica da Polícia Federal. Quanto o assunto é governabilidade e governança (eficácia, eficiência, efetividade) na execução das políticas públicas ele é enfático: “sobra vontade política, mas falta quem as ponha em prática”.

Vejam alguns trechos da entrevista:

Acre News – O saudoso jornalista José Chalub Leite dizia que ninguém vem para o Acre impunemente. Como e por que o senhor chegou aqui?

Roberto Feres – Cheguei ao Acre em agosto de 1984 por conta de um chamado que o então prefeito Flaviano fazia por profissionais de diversas áreas. Isso chegou aos ouvidos de um professor meu, na universidade de São Carlos. Estava concluindo o curso de Engenharia Civil, com ênfase a problemas voltados aos serviços e à infraestrutura urbana (saneamento, transportes, trânsito, habitação, geotécnica etc) e era uma boa oportunidade para pôr em prática essas habilidades. Vim de São Paulo numa época em que a palavra “paulista” era um pejorativo para designar forasteiro e oportunista, mas me senti parte daqui rapidamente. O aeroporto ainda era no Segundo Distrito e desci do avião ao meio dia, com 36ºg, carregando alguns quilos de roupas de frio e fui direto me apresentar ao trabalho. Antes do almoço, já me incumbiram de estudar um pedido de reajuste da tarifa de ônibus encaminhado pelas operadoras, que seria discutido na próxima reunião da Comissão Tarifária, dois dias depois.

Roberto Feres com o ex-governador Nabor Júnior

Acre News – O seu pai o influenciou na escolha da profissão? Quais são as suas origens?

Roberto Feres – Papai, agora com 93 anos, também é engenheiro civil, filho caçula de imigrantes palestinos, foi o que teve melhores oportunidades para estudar e se formou na Escola Politécnica da USP. Mas fez carreira na diretoria comercial da ferrovia paulista. Coincidentemente, se especializou na área de tarifas, só que para o transporte de cargas. Mamãe nasceu de uma família tipicamente paulista e teve sua primeira infância ainda morando na fazenda que o vovô administrava, em Brotas (SP). Depois foi para Piracicaba onde se formou professora, na Escola Normal, e pianista, no Conservatório de Campinas, e seguiu para o Rio de Janeiro onde cursou a Escola Nacional de Música. Foi aluna do Villa Lobos e colega de turma de alguns dos grandes maestros e compositores eruditos brasileiros. Falar dela dá uma história à parte, assim como de muitas das mulheres daquele meu ramo de genealogia. Sou o mais velho dos cinco filhos do seu Samy com a dona Josette.

Acre News – Como era a Rio Branco nos idos dos anos oitenta?

Roberto Feres – É recorrente as pessoas me fazerem essa pergunta. Talvez se eu tivesse chegado um ano antes, as minhas lembranças fossem ruas esburacadas e ter que trabalhar num porão do Palácio da Secretárias. O que encontrei, entretanto, foram alguns desafios instigantes num local que se preparava para as mudanças que a integração ao resto do Brasil traria com a pavimentação da BR 364. A sede da prefeitura já tinha ido para o prédio do Hotel Chuy e fui trabalhar no Departamento de Transportes Públicos que funcionava num sobrado no bairro José Augusto. Tudo muito organizado. Além de gerenciar o transporte público (ônibus e táxis), o setor cuidava de alguns projetos estratégicos de sinalização e pavimentação financiados pelo Ministério dos Transportes para interligação de bairros (ruas Leblon, Omar Sabino, Isaura Parente, Aviário, estrada das Placas) e para a abertura da ponte metálica, que foi reconstruída, após ficar inoperante por muitos anos. Também coordenava um programa educacional voltado para motoristas e cobradores de ônibus nas áreas da direção defensiva e relações humanas. O DTP era vinculado à Secretaria de Obras tendo a engenheira Maria Alice Araújo à frente, uma referência para toda minha vida profissional e até hoje uma amiga muito querida. Esse primeiro trabalho me proporcionou conhecer rapidamente a cidade toda e seus principais problemas localizados.

Com Maria Alice, diretora da Cohab, em 1987

Acre News – Rio Branco acabou de passar pelos transtornos causados por uma enxurrada do Igarapé São Francisco e a uma enchente do Rio Acre. Segundo especialistas, vem uma grande seca neste verão. Comente sobre esses problemas e sobre a infraestrutura da cidade como um todo.

Roberto Feres – Até o início dos anos 2000, a preocupação com enchentes vinha da ocupação das margens do Rio Acre. O Segundo Distrito, que ia da Seis de Agosto até o Triângulo, e o Aeroporto Velho, Bahia e Sobral eram as regiões com mais problemas para o planejamento. Hoje a ocupação que se deu em toda a bacia do São Francisco está provocando cheias frequentes e cada vez maiores numa região que consideramos alta e melhor drenada. Independentemente das mudanças no clima, o desflorestamento rural e a impermeabilização urbana pelos loteamentos e pavimentação das ruas fazem com que a água das chuvas escoe rapidamente para os igarapés Amaro, Batista, Fundo e Dias Martins e produza as cheias que temos sofrido, principalmente a partir do Bairro da Paz, passando pelo Horto Florestal, Procon e Tropical. A solução para isso exige implantar um sofisticado sistema de gerenciamento dos níveis e vazamentos dos açudes, na área rural, associado a obras de contenção da vazão dos afluentes e revegetação das margens, retardando assim o fluxo que chega à calha do São Francisco.

Acre News – O que é plano diretor, mobilidade urbana e cidades sustentáveis?

Roberto Feres – Rio Branco ainda não se entendeu no planejamento. O modelo instituído no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) criou uma porção de instrumentos bonitos, mas ineficientes para nós. Colocamos todos de uma vez no Plano Diretor, mas nenhum foi efetivamente regulamentado. O primeiro a descumprir as regras de ocupação é o próprio poder público. Interesses pontuais do mercado imobiliário também promovem modificações frequentes na legislação urbanística local. Por fim, há um descompasso entre o que se propõe no zoneamento com os investimentos na infraestrutura, principalmente de cobertura das demandas por energia e transporte público. Nem dá para começar a falar de mobilidade numa cidade onde as calçadas não têm continuidade e onde um cadeirante não consegue dar a volta numa quadra da região central sem desviar em obstáculos.

Acre News – Rio Branco é uma África quando o assunto é saneamento básico. Ninguém tem dados, ou seja, existe uma caixa preta sobre isso. E o marco do saneamento básico aprovado no governo passado? Quem vai executar esse serviço é o poder público ou a iniciativa privada?

Roberto Feres – Esse é outro tema onde a percepção do problema não está clara para a maior parte da população. Temos um sistema de abastecimento que produz água tratada para o dobro da população, mas falta água frequentemente e a qualidade da que chega às residências é, no mínimo, duvidosa. Parece normal a água chegar por quatro horas a cada dois dias, mas isso significa que nas outras quarenta e quatro, quando a rede está sem pressão, os contaminantes externos entram na tubulação. Por isso as caixas d’água estão sempre cheias de barro. Os dados oficiais mostram que entre o que é produzido e consumido há uma perda de mais de 60%. O esgoto também é um problema porque quase todo vai para os igarapés. Mesmo uma pequena parte que consegue chegar às estações de tratamento acaba seguindo contaminada para o Rio Acre. Redes de esgoto não poderiam receber águas de chuva e nem as de drenagem poderiam receber os esgotos. Mas isso está tudo misturado, prejudicando qualquer processo de tratamento. O Marco do Saneamento, que era a luz no fim do túnel, está sendo burlado no Acre graças ao lobby sindical e a falta de visibilidade política do problema. Na minha opinião o poder público, que concede os serviços, deveria se ater às questões de qualidade e universalidade e não na operação dos tratamentos e redes.

Acre News – Por que o transporte coletivo de Rio Branco é caótico? Existem soluções?

Roberto Feres – O sistema de transportes coletivos de Rio Branco sofreu um golpe em 1993 do qual nunca mais se recuperou. A cassação dos contratos vigentes e a entrada de uma dúzia de operadoras fez com que o que parecia ser um monopólio passasse a se comportar como um cartel, transferindo, de fato, a gestão para o sindicato formado pelas empresas, o Sindicol. A partir de então houve um crescimento real do preço da passagem e a fuga dos passageiros para outros modos, principalmente a motocicleta. Hoje em dia, com o dobro ou mais de população, o ônibus transporta menos passageiros que naquela época. A crise que a pandemia impôs em 2020 acabou por trazer a primeira boa notícia que foi a intervenção da prefeitura no sindicato, não nas operadoras, abrindo a caixa de Pandora e, forçosamente, transferindo à RBTrans a efetiva gestão. Há em curso hoje um processo para a contratação dos novos serviços em moldes bastante avançados de gerenciamento. Resta saber o quanto isso conseguirá atrair passageiros que estão atualmente congestionando o trânsito com soluções individuais.

Acre News – O que é ética na política? O que é ser republicano? Por que as políticas públicas não chegam à ponta, ou seja, às pessoas?

Roberto Feres – Não sou muito bom em teorias sociais e filosofias. Meus tataravôs eram republicanos. Dois deles foram fundadores do primeiro partido republicano brasileiro, o PRP. Cresci cercado por servidores públicos vocacionados. Estudei em escolas públicas que promoviam a liberdade e cobravam responsabilidade e respeito. Tudo isso acho que me formou num sujeito que entende a coisa pública garantindo condições iguais às pessoas ao mesmo tempo que não pode ser apropriada por ninguém. Onde as regras são fundadas em entregar sempre o melhor, sem privilégios nem casuísmos. Acho que muita gente entra na política partidária e também no serviço público com ideias erradas sobre como entregar bons produtos à sociedade e enveredaram para o clientelismo, o paternalismo e o patrimonialismo. E assim cultivamos ainda uma democracia capenga e uma república disfuncional.

Acre News – O senhor é municipalista. Por que?

Roberto Feres – É inadmissível o formato que se dá à distribuição do dinheiro público no Brasil. Quase tudo no cofre do governo federal e as cidades mendigando por financiamentos em programas carimbados e benesses de emendas parlamentares. Prefeitos e seus assessores gastam mais em diárias e passagens para aprovar um pleito que com uma equipe técnica para desenvolver projetos e fiscalizar obras. De quebra, os governos estaduais competem com os municípios em ações de maior visibilidade, deixando os custos de gestão e manutenção futura para as cidades arcarem. As pessoas moram e vivem nas cidades, que funcionaria muito melhor se pudessem cobrar do síndico/prefeito, diretamente, suas demandas corriqueiras.

Acre News – Comente sobre participação popular, inversão de prioridades e as politicagens.

Roberto Feres – Primeiro, na minha opinião, é preciso entender como lidar com a participação popular num ambiente onde a representação, oficialmente, deveria se dar no ambiente legislativo. Não sou contra, de maneira alguma, que haja entidades de classe, de bairro etc.., mas transformamos a Câmara Municipal num apêndice caro e disfuncional quando tudo já vai do Executivo com a chancela de aprovação por um conselho sob sua tutela. Dito isso, volto a 1985 quando fazíamos o orçamento dos investimentos municipais em discussões com as associações de moradores. Era uma verdadeira maratona dos técnicos da prefeitura para ouvir as demandas de cada comunidade, esboçar os projetos, orçar e retornar para negociação de prioridades. Tudo sem precisar de um conselho municipal de orçamento nem retirando a representatividade dos vereadores. O que ocorreu no tempo foi a transformação do legislativo num conjunto de apoiadores fidelizados versus opositores contumazes das ações do prefeito de plantão, cujas prioridades são manterem-se em visibilidade até a próxima eleição. Isso é ruim para a administração da cidade que fica à mercê de ações pontuais, quase sem planejamento de médio e longo prazos.

Acre News – Analise a gestão do prefeito Bocalom.

Roberto Feres – Sou simpático ao prefeito Tião Bocalom. Acho ele meio ‘cabeça dura’, mas digo isso mais como uma virtude que como um defeito. Ele se apega muito a pessoas de um círculo próximo e algumas vezes escolheu mal, ou poderia ter escolhido melhor, um ou outro assessor. Mas, convenhamos, o ambiente político local é bastante inóspito e exige um jogo de cintura às vezes além do que nossa coluna vertebral suporta. Pesa muito no meu conceito a seu favor ele ter iniciado o mandato no auge da pandemia, quando os problemas em diversas áreas se potencializaram, com restrições de mão de obra e falta de insumos para serviços essenciais. Minha ideia de um bom prefeito é que seja um síndico diligente. Que faça a cidade funcionar gastando pouco. Acho que perdeu o momento de conceder os serviços de saneamento à iniciativa privada e que não se acertou no quesito comunicação social/relacionamento com imprensa. Mas, no geral e no possível, faz um bom trabalho.

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